Outono


O Outono tem olhos doces e alaranjados, da cor da marmelada em taças de porcelana que as mães esconderam debaixo de um recorte de papel vegetal, e puseram à janela para que secasse ao sol.
O Outono abraça-nos com uma brisa fresca, envolvendo-nos na lembrança de todas as idades. Veste-nos camisolas, casacos e sobretudos de bolsos fartos onde escondemos a mão, recordando-nos que onde agora cabe a carteira ou o telemóvel, antes vivia a bolsa dos berlindes ou o pião.
O Outono chama-nos para casa, senta-nos em frente a livros que cheiram a novos, e a alvos cadernos que de tão aprumados, facilmente nos arrancam o compromisso de novas histórias escritas com uma excelente caligrafia.
Sim, um caderno em branco é como o nascer do dia.
A construção da cabana de canas e pedra que projetámos para uma das encostas do castelo ficará agora suspensa, e talvez nos deparemos com os seus destroços, daqui a uns meses, quando andarmos em busca de musgo para o presépio.
O Outono toma o canto das primeiras chuvas em dueto com a vidraça; tem o aroma que emana da terra seca, que, agradece generosamente, ser molhada; o Outono dança com as folhas e a ventania.
O Outono puxa uma manta sobre o sonho e o sono, guardando-nos, por saber que a melhor noite é o abraço de quem se ama na forma de pura poesia.
O Outono risca de encarnado e ocre, o horizonte, nas tardes em que resgatamos as castanhas dos seus ouriços, em que provamos os diospiros, os medronhos maduros, as gamboas e a água-pé.
O Outono talvez nos roube em parte aquele sol que se vê, mas em contrapartida, devolve-nos o olhar para dentro, para o melhor que temos no peito e a que usa chamar-se fé.
 

(Agradeço a foto ao meu amigo José Manuel Marques)

 

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