Há tanto tempo...



A noite quente denuncia a traição do tempo: já é verão.

Não tardará o solstício, mas este chão em brasa, o forno que o sol todo o dia incendiou, antecipou-se e tem marca indelével de Alentejo e estio.

Conheço-me destas noites e sigo com a mãe e o pai tentando caçar o fresco na esperança das esquinas da próxima rua.

Paramos de vez em quando para dois dedos de conversa; porque nos cruzamos com caçadores de brisa iguais a nós ou então porque os grupos sentados à porta reclamam um beijo enfeitado de palavras.

E tudo começa sempre com um "há tanto tempo".

A Maria aprendeu... ou melhor, tentou aprender a costurar lá em casa quando a minha mãe fazia vestidos, saias e blusas na casa da Rua de Três às clientes que escolhiam modelos de roupa folheando a elegância de uma Burda ou outros figurinos.

- Há tanto tempo... a tua mãe pedia para eu te ir adormecer e tu nunca querias dormir. Eu punha os meus dedos sobre os teus olhos, forçava-te a dormir, mas tu acabavas sempre a abri-los e a falar.

Pois...

Também me reconheço nisto.

Depois paramos os três junto à Fonte Pequena porque o som da água a correr parece que também refresca.

Deixamo-nos estar por ali à conversa.

Os três numa conversa que nunca saberei se é eterna ou se tem a minha idade, porque estas palavras, estas pausas e estes sorrisos... são tão meus quanto o sangue que me percorre carregado da genética daquilo que sou.

E regressamos a casa.

A noite dispensa lençóis, mantas, pijama... e já deitado sobre a velha cama eu escrevo para ti palavras de amor.

Resisto aos dedos fortes do cansaço e mantenho os olhos abertos.

Há tanto tempo...

Eu esperava que chegasses e fui compondo palavras que guardei para ti.

Ao ritmo de uma noite de verão, da minha história, deste estio e deste luar, ao som das fontes... palavras tão minhas quanto as da genética do meu ser.

E nem me recordo do instante em que adormeci.

Ao lado, sobre a mesa de cabeceira há um poema que só hoje escrevi para ti mas com palavras de há tanto tempo.


Falam de amor.

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