As nossas novas páscoas


Nos quarenta e cinco segundos que o micro-ondas demora a aquecer a caneca do leite, cabem, completas, três Ave Marias.
Sim, aprendi-o nesta quaresma, vivida tão intensamente com o Rui e com o Álvaro, porque as ruas de Jerusalém que ofereceram caminho aos passos de Cristo, têm hoje, as marcas e as cores dos ladrilhos das nossas casas.
A radiação “amiga”, aquela que ao fim de 33 sessões será suposto reduzir as probabilidades de reaparecimento do tumor extraído, começou a atuar, de mansinho, por alturas, precisamente, do carnaval, passou por um pico de intensidade a meio do percurso, apagando-se depois, de seguida e aos poucos, até à última sessão: a que decorreu na passada segunda-feira.
Por mais que acreditemos que a via-sacra termina sempre no domingo de ressurreição, os espinhos, as pedras e os chicotes, agora na forma de náuseas, vómitos, astenia, sonolência… doem muito, marcando o corpo, e sobretudo, a esperança, criando a tentação de desistir, mesmo para quem muito espera essa abençoada madrugada de túmulos vazios.
O jantar, às vezes, não corria muito bem, e o Rui ia deitar-se cedo, deixando-me no sofá a tentar distrair-me com o “Youtube” e “O tal canal”. Pelas onze horas, eu aquecia a caneca cheia de leite, e as tais três Ave Marias, rezadas a olhar o silêncio da noite através da janela da cozinha, nunca me deixaram ficar mal: o leite ficou sempre no estômago, confortando-lhe a noite.
Por mais cansada que ande a lua, ela nunca desiste de se reinventar, cumprindo os ciclos todos que o tempo lhe oferece.
Pedi autorização ao Rui e ao Álvaro para “alinhavar” estas palavras aos quase dois meses que passaram, porque sem elas, eu teria muito pouco para dizer sobre a minha Páscoa, e porque, acredito, talvez elas possam ter algo de Ave Maria sobre o silêncio das noites de alguém.
Quando vos disserem que Cristo caminhou descalço pelas ruas de Jerusalém a carregar a Sua cruz, confirmem-no no desespero de quem se senta ao vosso lado para jantar, sem poder falar claro, porque de repente ficou rouco, ou sem poder comer, porque a boca arde por entre a “morte” de qualquer sabor.
Só as palavras que chegavam, então, dos muitos amigos, continuavam a ser doces, porque o sabor do afeto jamais se perde entre qualquer terapia. As palavras dos amigos, o sorriso e a presença amiga do João Moura na sala de espera… como as mãos da Verónica e as vozes das mulheres de Jerusalém, todas entrelaçadas como lã num cobertor que protege do frio, aqui, no Século XXI, onde tanta gente nos passa pela história, e tão poucos contam para o seu desenrolar feliz.
Os santos não são estátuas enfeitadas no barroco tom dos altares, mas são essa gente que nos abraça e que se apronta a calar-nos o desespero. Os santos são os donos das mãos que apagam a solidão, e o Simão, homem de Cirene, recrutado de entre o povo para ajudar a carregar a cruz, também teve um nome nesta Páscoa: foi o Álvaro. Meia centena de manhãs com sorrisos à janela de todos os segundos, e o gesto que torna impotente, o léxico com que usa agradecer-se.
Quando vos disserem que Cristo ressuscitou numa manhã de domingo, algures nas colinas de Jerusalém, confirmem-no no olhar e na voz de quem segue convosco no carro, de volta a casa, com a máscara enorme e rígida da radioterapia, cúmplice, no banco de trás dentro de um saco de plástico do IPO.
A Páscoa, meus queridos amigos e leitores, é esta imensa ressurreição abençoada pela esteva e pelo rosmaninho, de quem acredita em novas madrugadas e que, insistente, clama por elas, às vezes no brevíssimo instante que o micro-ondas demora a aquecer uma caneca de leite.

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