O meu pai...


O meu pai inventou um assobio só para me chamar, e chamar o meu irmão. Entre milhões de outros sons, que até podem ser parecidos, nós conseguimos saber quando ele nos quer por perto, mesmo sem precisar de dizer os nossos nomes.
O meu pai é adepto e sócio do Sporting, e apesar de nos levar cachecóis e gorros verdes e brancos, de cada vez que vinha a Alvalade ver um jogo, não conseguiu derrotar o Eusébio, evitando que nos tornássemos ferrenhos defensores, e sócios do Benfica. Vingou-se mais tarde, não se convertendo nunca às piadas do Herman José, e mantendo-se fiel ao Cantiflas:
- Como é que podem achar graça aquele “esparvêrado”.
O meu pai só frequentou a escola até à quarta classe, mas foi ele quem me ensinou a fazer contas.
Eu faço cócegas ao meu pai, quando o apanho desprevenido, e ele, impávido e sereno, diz sempre:
- “Nãaa”, podes desistir. Mas se fosse eu a fazer-te a ti...
Gosto de tomar o pequeno-almoço com o meu pai, os dois de pijama, quando estou em Vila Viçosa. No final negociamos quem irá primeiro para a casa de banho, e invariavelmente ganho eu. Ele não se fica, e diz:
- "Nãaaa" me importo. Vou dormir mais um bocado.
O meu pai é quem mais gosto de ter ao meu lado enquanto conduzo. A mãe boceja lá atrás, depois do primeiro quilómetro de vigem, e nós divertimo-nos olhando-a no espelho.
Às vezes dou conta que o meu pai se esquece de algumas coisas, mas como eu tenho boa memória (assim o diz toda a gente), divido-a pelos dois em partes iguais, e então, ambos fazemos boa figura.
Gosto de ir tomar café com o meu pai, caminhando devagar até à pastelaria perto da nossa casa. Mesmo que já conheça muitas das histórias que ele me conta, quando paramos debaixo de uma laranjeira, eu “sorvo-as” como se fosse a primeira vez, prevenindo qualquer saudade que o tempo possa semear entre os dois.
O meu pai refere-se sempre a nós como “os meus gaiatos”, e eu gosto muito.
Também gosto quando o meu pai me diz, ao despedir-se de mim:
- Vai devagar para chegares depressa.
E eu vou sempre devagar.

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