Esta água que nos quer...


Estar de férias é virar as costas ao relógio, que ainda assim, manifestando total indiferença para com a nossa atitude, segue no seu ritmo normal, arrancando-nos cruelmente à infância.
Sinto-o sempre de forma clara, mas muito especialmente neste “quem dá o braço a quem”, quando caminho com os meus pais a caminho da fonte do Gerês, algo indiferentes à linguagem açambarcadora dos jerricans.
Fazemos o percurso cinco vezes por dia para que, chegados à base da montanha, tomemos um copo da água morna que o céu deitou sobre ela, apelando a que a enchesse com as suas melhores e maiores virtudes.
E assim, cada gole de água é uma bênção e um padre nosso bebido da Terra, apelando ao céu vida e saúde.
Tão íntima e eficaz se faz esta prece, que às vezes, mesmo sendo agosto, o dia emudece o sol e faz descer o céu até nós, deixando que as nuvens nos abracem de água, tal qual usa fazer com a serra.
Então, no caudal do rio que corre além defronte, para lá dos odores da giesta, do medronho e da hortelã, que são ofertas da terra, juntam-se todos os sabores que trazemos no peito em cada pedaço do que somos.
Para tudo culminar num imenso abraço ao mar.
A verdadeira dimensão do Homem lê-se no coração, e brilha com a liberdade à superfície das águas, assim como da gente que o beija no seu caminho.
Algo indiferentes àquilo que de nós o rio possa ou não cantar, voltamos, eu e os meus pais, para uma pequena mesa quadrada que está ao fundo da sala do hotel.
Cruzamos palavras no jornal e na conversa, e encontrando muito mais do que sete diferenças entre aquilo que a memória guardou de nós mesmos e tudo o que somos agora, aceitamos trair as férias para espreitarmos o relógio, ainda que de forma fugaz, lembrando-o de que o tempo para nós pouco importa, por sermos um caso sério de eternidade.
Definitivamente, acho que o segredo é viver tão intensamente quanto se o mundo acabasse amanhã, mas saboreando a vida com a calma e o detalhe de quem acredita que o mundo nunca acabará.

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