Numa casa Portuguesa...


No alvo tom de uma qualquer madrugada, algures entre a canela, o pastel de nata e a bica, não existe Português que não se sinta marinheiro, por obra e graça de Vasco da Gama, e não se orgulhe de ser universalista, poeta e mestre de vida, por carregar em si, entre outros ilustres benefícios, esse gene extraordinário que inventou a mulata.
E contra essa verdade secular, como inesgotável perfume num infinito pulverizador, não há nada que se oponha, mesmo quando a palavra, o gesto e o pensamento lhe desmentem a virtude.
Vamos a isso…
O Português não é racista nem xenófobo, mas não por mero acaso, um amigo Brasileiro me perguntava há tempos se eu conhecia alguém que lhe desse aulas de dicção para alterar o sotaque, depois de ter sido maltratado e ridicularizado num dos estabelecimentos comerciais mais conhecidos de Lisboa.
A igualdade de género é uma realidade “reconhecida” na alma lusitana, e todos recusamos entender porque morrem dezenas de mulheres às mãos dos seus companheiros, mesmo que ainda seja regra comentar o sucesso de alguma mulher com o tradicional “com quem terá dormido?”.
O Português não é homófobo, afirmando até tolerar que os outros possam ser diferentes em termos de orientação sexual, ao jeito de quem admite abrir uma exceção, e ter rosas, por uma semana, numa jarra onde habitualmente tem cravos. Não é uma questão de “fechar os olhos” para deixar que aconteça, é uma questão de reconhecer ser igual.
Brincamos às diferenças por entre num cortejo pobre, mas travestido de igualdade, tolerância, bons costumes e paz, muita paz, mesmo que só num século tenhamos assassinado um rei, um príncipe herdeiro, um presidente da república, um primeiro-ministro e um ministro da defesa.
E quando algo falha?
Usamos a tática dos políticos, e resgatamos o raio de uma trovoada qualquer, que, caindo sobre uma árvore singela, justifica o macabro sentido da mais fétida incapacidade e intolerância.
O país de poetas, mas onde a maior parte das pessoas não sabe distinguir um verso de Camões da frase de uma campanha para vender lixivia, sob a iliteracia de nem saber distinguir um “a” com ou sem “h”, refugia-se na cómoda cegueira do acaso e da exceção que confirma a regra.
O caso Marega é uma vergonha para lá dos piores adjetivos mais comummente usados, mas alguém tinha dúvidas de que um dia chegaríamos aqui? Alguém mexeu um dedo para alterar o decurso desta triste história?
Penso que não, até porque em vez de irmos ao psiquiatra tratar as “depressões”, usamos comprar uma garrafa de gin, distraindo os sintomas à medida que nos “metemos”, adicionalmente, noutro problema, tornando-nos alcoólicos e inconscientes.
A negação é o sustento da mediocridade.
De caminho, e porque por estes dias o principal problema da nação parece ser o acesso à eutanásia, permitam-me que desabafe convosco a minha convicção de que a dignidade na hora de morrer deriva, apenas e só, da excelência dos dias que nos foram dados para viver, e que a liberdade daqueles que se reveem na necessidade de uma lei que regulamente a morte assistida, é exatamente igual à minha de a considerar indigna.
Para lá do credo, da política ou da prova de pensamento moderno, afirmo-o como Homem, mas também como profissional de saúde que sou, recusando-me a ferir a ética que orgulhosamente abraço, colocando a morte no resultado da equação daquele é o objetivo mais nobre e feliz: a vida.

 

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