O coração e a pele


A manhã fria de fevereiro leva-me até ao roupeiro grande, e quando dou conta, subo a Rua de Santo António, em Vila Viçosa, abrigado pelo sobretudo cinzento que herdei do meu pai.

As memórias criam a pele que melhor nos protege do inverno.

A Zinha e o Manel são do meu tempo, ou melhor, são dos meus tempos todos, porque eu me recordo deles desde quando comecei a guardar lembranças de mim.

Os dias pareciam, então, muito maiores, porque nada ficava por fazer, ou por dizer.

Às vezes a tropeçarmos nalguma dificuldade que traía a fonética, mas sem deixar de exprimir a vontade dos sentidos, e a sede:

-Um copo de “aba”, por favor.

Escorregávamos pelas caixas de cartão vazias, guardadas no armazém, com a mesma alegria com que, ao longo de outros tempos, soubemos sorrir sobre a gravidade das deceções, que nos puxaram para o chão frio.

Palpámos juntos a nossa primeira neve, perfumámos as mãos nos troncos das mesmas estevas, rezámos as nossas esperanças nos mesmos padre nossos, e algures entre a “telepatia” e a “paixão”, aprendemos a dançar nas mesmíssimas canções.

Por maior que se fizesse a distância, jamais deixámos de nos ver, porque todo o coração tem janelas, aeródromos e aviões, para que os amigos jamais sejam gente longe.

Há uma semana tomámos posse para a mesa da Régia Confraria de Nossa Senhora da Conceição, e por nos sentirmos tão bem, assim, juntos, sob a fé que mesma alva guerreira capa exprime, resolvemos fazer uma foto.

A fé é irmã das memórias, unindo futuro e passado na doçura de um presente, que até poderá ter tudo do inverno.

A fé, a memória, e os amigos, que unem pela coerência, o coração e a pele.

 

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