A minha mãe e as flores do açúcar


A mulher mais bonita do mundo faz hoje 80 anos, e eu e o Zé Artur gozamos do imenso privilégio de a termos como nossa mãe.

Mãe e eterna casa, numa perspetiva plural colhida desse amor maior com o nosso muito querido e saudoso pai. Um amor pleno, sem muros e sem reservas, na mais generosa partilha e mescla do ser e da identidade.

Enquanto buscava as primeiras palavras para este texto, aconteceu que num gesto brusco ao fechar o porta luvas do carro, entalei e parti o terço que ali mora. Reparei-o de seguida, julgando deixá-lo intacto, mas apercebi-me mais tarde que lhe faltava uma Ave Maria, caída algures num daqueles “esconderijos” que têm os carros.

Foram infrutíferas, as tentativas para encontrar essa pequeníssima esfera de madeira.

Na interseção entre o divino e a vida de todos os dias, no louvor, na festa, mas também no suporte ao lado mais intenso da dor e do silêncio, uma Ave Maria discreta, que não se vê, que saiu da forma comum, mas que nos acompanha sempre: é assim, afinal, a nossa mãe, que até nasceu quando os sinos chamavam para a primeira novena da festa de Nossa Senhora da Conceição, no ano da graça de 1942.

Para a nossa mãe o cansaço dissolve-se entre a necessidade de alguém e a força do seu muito querer, e o som daquela máquina de costura que atravessava o nosso noturno repouso na véspera dos dias festivos, foi a proteína da generosidade que nos fez, e que ainda hoje nos faz crescer.

A nossa mãe é tranquila, e sorri para a gente e para o mundo, reconhecendo que chorar é um acto demasiado intimo para ser feito em público, talvez porque saiba, como ninguém, que nós colhemos a alegria e a paz que semearmos no coração dos outros.

A nossa mãe nunca pensa em nós depois de pensar nela, tem orgulho naquilo que somos, e desfruta de qualquer expressão que a nossa liberdade nos ofereça, porque o essencial é que sejamos felizes e honestos, para o mundo e para nós mesmos.

Mestra na arte de cerzir, ela sabe ir buscar fio às bainhas para completar o tecido danificado pelo tempo ou por qualquer acidente, ensinando-nos assim, a nossa mãe, que, demasiadas vezes, não é necessário ir muito longe, e para lá de nós, para suturarmos as feridas que nos rompem a vida, não só na pele.

Porque os dias têm de ser vividos na profundidade do seu mais pequeno detalhe.

E conversamos muito, ilustrando o tempo, e desfrutando da melodia e da poesia de cada mais pequena palavra. A mãe, ao acordar. recorda-se sempre dos seus sonhos, apreciando partilhá-los connosco enquanto tomamos o pequeno-almoço. Eu leio o jornal em voz alta, sempre que encontro algo que lhe interessa, e convoco o YouTube para escutarmos alguma música especial que tenha encontrado.

Sabemos estar sózinhos sem nunca nos sentirmos sós, porque há muito que aprendemos a deixar beijos e flores suspensos dos silêncios e das distâncias, e nunca nada partirá de nós, nem tempo, nem espaço, nem mais nada, que não tenha indicios claros deste amor maior.

A nossa mãe, que é tão forte quanto tranquila, tem esse imenso privilégio de nos saber amaciar a vida, plantando, por via do olhar ou de um beijo, as maiores e mais ternas flores de açucar, que também se provam na essência terna de uma Ave Maria.

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