A manhã de janeiro


 O aroma do café ainda a pingar, muito quente, deste o filtro zeloso, e diretamente para a cafeteira, oferece-me à sala um toque inquestionável de conforto e de intimidade.

Para lá da vidraça, e desde o lugar onde a ponte desmente o Tejo, abraçando as margens, o sol espreguiça-se, ainda ensonado, traçando o céu com linhas encarnadas, azuis, amarelas…

Com mais ou menos nuvens em modo e gesto de prisma, não existe dia que não nos traga a tinta de todas as cores.

E escrever, ou rabiscar, o tempo a preto e branco jamais será uma inevitabilidade, mas apenas a opção, aparentemente cómoda, da discrição do sofá cinzento e silencioso situado atrás do biombo.

Esta demissão de dizer-se é acompanhada, muitas vezes, e desde o lado de fora, pelo juízo dos demais, pela rotulagem que atribui, de modo completamente cego, defeitos e virtudes, vulgarmente, e levianamente, associados ao grupo social, profissional, à confissão religiosa, etnia, ao ponto eleito do espectro político, ao código postal, e até à filiação clubística.

A demissão de ver o outro do modo que ele merece, inteiro e com todas as cores… sempre que ele se predispõe a deixar-se ver para lá do “grupo”.

A pertença e a aparência sobreposta à identidade, e os argumentos “fast-food”, e a preço de saldo, em modo campanha eleitoral, transportados à velocidade de uma qualquer “Influencer” em destaque nas redes sociais.

Por entre o completo repouso do pensamento e da inteligência, a “anemia” da generosidade e da clarividência, e sem recurso ao juízo dos mais importantes valores da alma, a vida decorre ao jeito fútil e superficial de telenovela, com a canonização súbita e automática, das figuras eleitas semanalmente para a capa da revista Caras, por exemplo.

A caneca do café acode-me aos lábios, ao mesmo tempo que deixo que as palavras se aproximem, sem filtros ou nuvens, daquele tanto que a alma sente e grita numa manhã de janeiro.

Sem receio do que elas possam confessar, ornadas de todas as cores com que o sol me tingiu a pele dos dedos.

Usam chamar à verdade, delírios e alucinações de poetas, esquecendo-se que o Homem se cumpre nos versos desnudados de pudores e de todos os medos.

E o lugar é apenas um detalhe, porque a pátria do Homem será sempre a liberdade.

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