Frívolas virtudes no país da norma



Há alguns anos, durante uma conversa sobre as religiões e a sua dimensão cultural, um amigo comentou de forma muito natural, que nós, os católicos, seremos confrontados com maior exigência na hora do juízo final, tão só porque nos foi dado conhecer o “verdadeiro” Deus.
Nós já saímos da Idade Média, mas ela insiste em não sair de alguns de nós.
Um outro amigo, e numa outra conversa, confessou-me a sua satisfação por ter encontrado uma médica que lhe solucionou o seu problema de saúde, afirmando de forma muito natural:
- Ela é Brasileira, mas é muito competente.
Já se ela fosse boa a tirar bicas num bar qualquer.
E por acaso em Paris, nós, os Portugueses, também estamos identificados como sendo bons a limpar casas de banho.
Ainda hoje sou questionado sobre se sei cozinhar, limpar a casa ou passar a ferro, dado que vivo só há trinta e seis anos, e a recorrência da pergunta deve-se apenas ao facto de eu ser homem.
“A mulher na sala e na cozinha”, ainda e sempre como no famoso livro da Laura Santos, contemporâneo da revista “Ela, donas de casa”, que escolhia a “mulher ideal” através da qualidade de um bom suflé.
Num mundo onde o conceito de família ainda é o agrupamento de mulher, marido e filhos, alinhados num piquenique em foto de tampa de caixa de bombons, as mulheres solteiras serão sempre as “encalhadas”, que por incompetência não conseguiram cativar nenhum homem, e os homens solteiros são invariavelmente estroinas e sem sentido de responsabilidade.
E a felicidade, o que é? Uma figura de estilo?
E a liberdade? Uma avenida e um spray de modernidade despejado sobre o mês de abril?
Às duas da manhã, numa rua esconsa da cidade, cruzamo-nos mais confortavelmente com alguém da nossa etnia, do que de qualquer outra, mesmo que tal criatura, parecido connosco na sua tez, seja um perigoso serial killer.
Desconheço se algumas vezes se depararam com situações e apreciações destas, mas ouso acreditar, pela recorrência com que as enfrento, que sim.
Nós somos a norma, e os demais são a aberração ou a patologia, que quanto muito, e por generosidade, eu até tolero, mas de longe.
Se o Homem não fosse o seu coração…
Mas a verdade é que é, e a primeira fidelidade que importa é a que deve a si mesmo, por muito que tal possa ferir o “padrão” que não vive nas sebentas e nos catecismos, por onde falam os Homens com pretensões a “deuses”.
Em maio celebra-se o Mês Europeu da Diversidade, que para algumas pessoas, confortavelmente sentadas nas suas cartilhas, será um mero devaneio folclórico de esquerdistas, gays e mulheres que não gostam de usar soutien.
Mas a diversidade, de onde emana a extraordinária riqueza do universo, é a expressão, nas múltiplas faces, da legitima diferença que nos habita o coração.
Ninguém é ridículo ou menor quando se cumpre a si mesmo nas suas mais fortes convicções, e a honestidade e a competência não têm vínculo a qualquer “estatuto”, género, etnia, orientação sexual, ideologia, crença, nação ou condição.
Sem o “nós e os outros”, porque a diversidade aceita-se e vive-se na inclusão, e aí, todos somos orgulhosamente iguais.
Por entre a liberdade que se celebra no peito e na poesia de cada um.
E quando se pede a paz, é urgente a coerência de a cultivarmos pelo respeito absoluto do outro, começando nestes mais pequenos detalhes.
É isto que eu, convictamente, quero para mim, para os meus e para o meu país.


(O desenho é da autoria do meu sobrinho Luís Barreiros)

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