A minha amiga Maria Emilia


Há dias em que, antes de nos sentarmos para escrever, puxamos uma braçada de flores do campo para cima da mesa, não vá acontecer que as palavras se nos fujam, ou que não as encontremos no seu melhor, e mais fiel significado, necessitando que os malmequeres, o alecrim, a giesta… nos ajudem compondo de verdade, a forma e o perfume do sentir que queremos contar.

Esta tarde escrevo com a minha mesa inundada de flores. Muitas, e de todas as cores que conheço.

É verdade, e também trouxe gargalhadas, imensas e gordas, aos molhos ou dispersas por aqui, porque vou falar da Maria Emilia.

Caminhando devagar pela galeria de memórias que guardei da primavera de 1992, quando a conheci na altura em que eu terminava o Serviço Militar, e começámos a trabalhar juntos numa empresa farmacêutica que tinha sede no Prior Velho, eu, que tinha então menos de metade da idade de hoje, vejo-me mais envelhecido.

Consigo até vislumbrar-me aborrecido e irritante, por entre tantas certezas e inabaláveis convicções.

Os amigos, aqueles bons e que ficam, são quem nos acompanha até ao Tejo, ou qualquer outro rio, descendo as ruas e as avenidas de Lisboa, ou de qualquer outra cidade, ajudando-nos a subtrair na idade, à medida que somamos cada mais pequeno passo.

A Maria Emilia descerá sempre comigo até ao Tejo, e ainda que somemos milhões de quilómetros, a esperança com raízes de fé, a gargalhada que tem proteína, e o “café”, que não tem açúcar, mas que é rico em oxigénio e hormona de crescimento, ajudarão a que, ao chegarmos ao Cais das Colunas, teremos tanto de crianças como de eternidade.

Porque os amigos acrescentam vida, desmentindo o tempo, e desmontam a velha teimosia das balofas convicções, que são, quase sempre, a casa onde os medos se disfarçam.

Ao fim de alguns anos eu deixei a empresa, onde a Maria Emilia ficou, mas continuámos a ver-nos e a ler-nos, sempre em primeiríssima mão num lançamento de um livro.

Trabalhando nos últimos anos, em edifícios contíguos, encontrávamo-nos muitas vezes na esplanada, e eu lá lhe dizia que “hoje finalmente nasceu o sol”, ou então, “já encontrei a paleta das cores e o dia já não será a preto e branco”.

Sempre a troco de uma gargalhada, e com o ar da piscadela de olho a informar-nos se estava tudo bem com as meninas dela, ou com todos os meus.

Os amigos não falam, encharcam-nos o dia de flores, não deixando nada por dizer.

A Maria Emilia “adormeceu” no sofá na noite da última sexta-feira, antecipando-se e galgando até ao céu do Cais das Colunas, aonde um dia nos encontraremos.

Deixou-me aqui com uma sensação estranha, porque pela primeira vez, e antecipando a saudade, associo o seu nome a algo triste.

Nunca ouvi a Maria Emilia dizer que estava mal, mesmo quando parecia que a lua se preparava para cair-lhe em cima, porque estar bem é sentir forças para suster qualquer satélite, natural ou não, impedindo que ele nos esmague.

Os nossos heróis são gente que tem força, e jamais serão a gente sossegada.

Então revisito o sentimento e fico menos triste, afagando as flores que persistem aqui, viçosas, sobre a mesa, como quem manda um beijo até muito para lá da lua.

Obrigado, querida Mila.

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