Entre a melancolia e a pressa…


Às vezes, por sentir o tempo passar depressa, tenho a sensação de que vim até aqui, espreitar o futuro, mas que não tardarei a regressar ao dia a que pertenço, e onde a caderneta de cromos está aberta, com um tubo de cola ao lado, sobre a mesa da sala, nesse dia que se rende à noite ao som de histórias contadas ao redor de um velho estrado de madeira que tem uma braseira no centro, para onde eu gosto de atirar, discretamente, poejos, grãos de pimenta… divertindo-me com a reação da gente que me acompanha.

Gente que eu julgo eterna, porque a morte é apenas um conceito explanado, muito ao de leve, no livro de Ciências da Natureza. Algo que ainda não passou e fez doer.

Gente como eu, de calções e um ar catita, que me espera na travessa do Senhor João do Forno para que possamos continuar a brincadeira que interrompemos só para eu poder vir até aqui. O Manuel, o João Paulo, o Pedro, os dois Paulos…

Mas às vezes, nestes dias longos de não sair de casa, olho o terreiro lá fora com os poucos automóveis, o ruido da chuva, e escuto os cientistas, bebendo-lhes a ciência e as previsões, como quem vasculha a razão procurando a esperança:

- Só lá para o verão.

Maldita pandemia. E este tempo que nunca mais passa.

Afinal aonde ficamos: na lentidão ou na aceleração do tempo?

No outro dia, antes de sair com o carro, reparei que na parede de cal, em frente ao lugar onde estava estacionado, uma “destemida” caracoleta já ia a meio do caminho, quase, mas mesmo quase, a chegar ao cimo e ao pequeno telhado que encima esse muro que divide a rua, do quintal que lhe serviria comida farta.

Ainda fiquei uns segundos a olhar para ela, mas não fosse o jardineiro, que andava deste lado a acertar o bucho, pensar que eu endoidecera de vez, segui o meu caminho.

Quando voltei não me recordei mais da “bichana”, e no outro dia, ao sair novamente com o carro, reparei que ela já não estava lá, querendo eu acreditar que se delicia, agora, languidamente, por entre trevos e serralha, como se não existisse amanhã.

Será que ela sente saudades da rua de onde veio?

Talvez.

Entre a melancolia e a pressa de um cais seguro, que um qualquer farol nos indique, aqui estamos nós, à janela, olhando e palpando o tempo.

Trazemos a tiracolo os abraços e os sorrisos, que é aquilo que dos nossos nunca morre, e olhamos com confiança o futuro, ainda que o tempo pareça lento.

O nosso sonho perverte o tempo, oferecendo-lhe este estatuto bipolar de avião ou caracol.

Seguro, é que do outro lado do muro existirá uma esplanada com vista para o Tejo, um gin com trevos e serralha… não, é claro, com limão e muito gelo.

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