As botas de dormir… e as outras


A minha avó Natividade, mãe do meu pai, comprava a lã em meadas, e eu ajudava-a a preparar os novelos que lhe permitiam tricotar com muito maior rigor e facilidade, as botas de dormir que ela “perfumava” de todas as cores.

Eu estendia-lhe os meus braços pequenos, oferecendo-os à meada devidamente esticada, e a avó ia compondo os novelos, tendo por núcleo, quase sempre, um pedaço de cartão de alguma caixa velha, ou então, a página de uma revista que já perdera a atualidade.

É quarta-feira de cinzas e o dia amanheceu soalheiro, percecionando-se o sorriso de um Alentejo contente por ter as ribeiras e as bacias cheias de água. Agora, sim, poderá chegar a primavera.

Neste primeiro dia da quaresma faço-me à rua sem sobretudo e sem casaco, e subo ao castelo, para ir visitar esse chão sagrado que é leito e altar dos meus mortos.

Visito-os um a um, devagar, e a começar pelo meu pai, sentido que o traço dos meus passos lentos sobre a calçada de pedra, me oferece a saudade, que associada à memória, tece fios de lã que me são entregues em meadas com tantas cores quantas cabem no sol.

Trago-as comigo e, já em casa, ofereço-lhes os braços de menino, antes de começar a compor o meu mundo, em novelo de querer, partindo do pedaço dobrado e abandonado de algo que já foi importante, mas deixou de o ser.

Para começar a tricotar umas botas de dormir… não, desculpem, botas de viver tranquilo com a ajuda de uma vontade qualquer.

A avó Natividade tricotava as botas ao serão, e eu guardo a perceção de que uma parte significativa da sua obra era feita a dormir, e de olhos fechados, porque as suas mãos sobrepunham-se, pelo gesto certeiro e afinado, ao cansaço e ao sono.

Eu só voltava a ser convocado na altura em que o dito calçado de lã estava quase pronto, e para ajudar a fazer os atacadores.

Então, pegávamos numa extensão de lã com quatro fios, e cerca de um metro, comigo a enrolar uma das pontas num sentido, e a avó a enrolar a outra ponta em sentido contrário. Quando lhe parecia, a minha mestra tomava na mão direita o ponto intermédio desta estrada torcida de lã, uníamos as duas extremidades, e os atacadores nasciam, como por magia, do entrelaçar cruzado e do abraço da lã.

Desta quaresma nascerá a primavera, com a ressurreição da Terra, tal qual a Páscoa de Cristo e de Jerusalém, cantada em versos pelas ribeiras de poejo e de hortelã, na rota dos juncos que sabem bailar com o vento.

E destes fios, pedaços dos passos todos que guardei, na perspetiva de Céu, muito mais do que de chão, fecharei, dobrando-os com mestria no sentido correto, o compromisso que tenho para com tudo o que diz o coração, ainda que sobre o previsível e as “virtudes” das almas alheias.

Porque as botas de dormir se fabricam tal qual as botas de estar acordado, ainda que, e muitas vezes, possamos passar a ideia de que as tricotamos na inconsciência do olhar fechado.

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