Jamais importará o que alguém nos diga


Sempre que brincávamos, de manhã, construindo uma cabana com o lençol de cima, que, preso no “pirolete” da cama de ferro forjado, ficava em risco de se rasgar, nós já sabíamos que a nossa casa era muito mais do que aquele brevíssimo primeiro andar rodeado pelos melhores vizinhos que algumas vez tivemos.

Por essa altura, tu acreditavas que o mar passava rente à janela, e que viria buscar-te, a qualquer hora, para ires ajudar o Marco a encontrar a mãe, esquecida que estava há muito, aquela outra vontade de seres pastor, só para ires brincar para as montanhas com o Pedro e a Heidi. Eu também sonhava, mas com o dia em que um helicóptero me viria resgatar pela varanda, para poder ir a um palco qualquer, e vencer a Eurovisão, por Portugal, é claro.

Nessa idade, com quase cinco anos de diferença, eu adorava ser desmancha prazeres, explicando-te que depois do vinte e nove não vem o vinte e dez, mas sim o trinta. O trinta e um viria, quiçá, logo a seguir, se tu não acudisses de imediato, quando a mãe fosse chamar-te, à janela, com aquela acentuação forte no “u” com que ainda hoje brincamos:

- Ó Zé ArtuuUUUUUuuuur.

O Natal era então a sombra silenciosa do pai a caminhar às escuras em direção ao presépio com um saco de presentes, e um bolo de chocolate feito pela mãe, no pequeno tabuleiro de alumínio que guardávamos na despensa.

Tinhas então uma camisa encarnada com pintas brancas, e uma camisa branca com pintas encarnadas, mas eu não me recordo se foi com algumas dessas que, no consultório do saudoso Dr. Jeremias Toscano, tu semeaste no chão, todos os botões, na altura em que te preparavas para ser auscultado.

E eu que te acompanhava, também andei de gatas em busca dos ditos botões.

Adoravas ter roupa nova, muito mais do que vestir “aquela camisolinha que já foi do mano”, embora, e sem querer, constantemente me aproximasses do estatuto, inusitado e inédito, de modelo.

- O man’Quim.

Pois… as contrações do falar Alentejano são berços de milagres.

Um dia mudámos de casa, depois eu mudei de terra, e a seguir mudaste tu… mas nunca deixámos de ter vista para o mar que nos passava pela janela, e o helicóptero que tínhamos na varanda.

“A princípio é simples, anda-se sozinho”, mas a vida a insistir reagrupar-nos, até porque, assumidamente, “há sempre alguém que nos faz falta”.

Também sabemos que “Não se ama alguém que não ouve a mesma canção”, e os quatro anos e meio dissolveram-se e ficaram assim, definitivamente, num camarote do Coliseu, onde os Madredeus tocavam com o grande Carlos Paredes, à porta de uma sala de cinema das Amoreiras, quiçá de um teatro, ou até daquela “noite só”, em 1999, quando fomos ao Pavilhão Atlântico celebrar os vinte cinco anos de abril e da liberdade, com os Trovante.

Fomos campeões, sempre vestidos da cor do sangue, porque por ele se concretiza a esperança indiciada por qualquer outra cor, mas aquele golo do Luisão, quase no final do jogo, a aproveitar uma fífia do Ricardo… ó mano, mas que grande abraço.

“Não importa o que alguém vos diga, mas as palavras e as ideias poderão mudar o mundo”. Já sabíamos, mas confirmámo-lo novamente, juntos, ao escutarmos o Robin Williams na sua magnifica versão do professor John Keating, numa tarde qualquer em que fomos ressuscitar os poetas.

É esse o melhor resumo da nossa história.

- “Vem depressa para o hospital, o João vai finalmente nascer”. “Não te demores, porque o Luís aguentou o fim de ano, mas vai nascer agora”.

- “Vem, o pai partiu”.

Entre o melhor e o pior da vida, o ser chamado e o poder chamar-te, tu, o meu irmão és a antítese de estar só.

Parabéns pelos 50 anos que hoje celebras, e muito obrigado pelo tanto que me dás, muito para lá daquilo que as palavras confessam.

E se um dia sentirmos saudades, voltaremos os dois, por mar ou pelo ar, até aquela casa de primeiro andar, só para buscarmos a sombra calma dos passos do pai, e o bolo de chocolate, ainda quente, que a mãe deixou em cima da mesa da cozinha.

Sempre, sem nos importarmos com aquilo que alguém possa dizer-nos, ou dizer de nós, porque como escreveu Al Berto, um dos poetas que compartimos: “Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida”.

 

PS – Uma das enormes vantagens de cumprir 50 anos é o à vontade para podermos partilhar a nossa pior foto de sempre, algures entre o meu buço mal semeado e a tua franja ainda amordaçada pela água do banho.

 

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