Vou ter saudades suas


Existia uma muralha de beijos entre mim e o medo, uma fortaleza transparente e gosto a caramelo, em cuja sombra brincava, alegre, colhendo palavras doces nos canteiros em forma de abraços, e olhando o céu muito azul, que sentia sempre tão demasiado perto.
Ria-me muito e quase achava ridículo quando alguém me falava em envelhecer.
Mas o tempo é o mestre que consegue vergar a nossa teimosia. Beijo a beijo, foi passando e fragilizando esta muralha, expondo-me ao medo e à ventania, ensinando-me também, e pouco a pouco, o que é a saudade e como ela dói.
“Atão filho…”. 
Era com estas palavras que o meu tio António recheava o beijo com que sempre nos saudávamos, e elas ecoaram em mim por entre mil memórias, enquanto o acompanhava na sua última subida ao castelo, em Vila Viçosa. A última viagem dos Calipolenses quando morrem.
Sentimo-nos envelhecer quando os beijos se nos apagam assim, e o medo vai ficando tão próximo de nós.
“O mê Quim”.
Sinto-me tão mais pobre por entre este silêncio que vai devorando as vozes de quem me quer e me sente verdadeiramente seu.
O silêncio numa manhã quente, daquelas em que o Alentejo rouba a essência da esteva e a casa com a do alecrim, espalhando-as depois pela solidão das ruas. 
“Atão, tio”.
Até sempre, e um beijo. Vou ter saudades suas.

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