Quanto tempo existe no espaço de uma hora?


- Quanto tempo existe no espaço de uma hora?
Eu roubei-me à pressa de um fim de tarde de trabalho, mas a enormíssima maioria dos espectadores que comigo se sentaram no teatro, fizeram-no relativamente à dolorosa lentidão dos seus dias.
De início toda a gente me olhou de viés, mas depois das primeiras palmas e dos sorrisos cúmplices, quando se certificaram que eu não me equivocara e que sabia muito bem àquilo que ia, adotaram-me facilmente como um dos deles. Talvez o substituto do neto que se esquece de passar lá no lar.
O meu colega Renato reformou-se há alguns anos, e agora, com a idade já pelos setenta, juntou-se a um grupo de seniores para ensaiarem um espetáculo de Revista à Portuguesa. Ele e a mulher, a inevitável e queridíssima Margarida.
Na semana passada telefonou a convidar-me para a récita:
- O Barreiros não quer vir assistir à minha interpretação de um fado do Carlos do Carmo? Um fado genérico, já se vê.
A terminologia dos nossos muitos anos de trabalho mantem-se nas conversas entre os lançamentos de livros e o Estádio da Luz.
Eu respondi que sim, acertei o dia em que poderia estar, mas aqui para nós que ninguém nos ouve, eu acho que o Renato nunca acreditou que eu aparecesse.
Se foi o caso, enganou-se, pois eu lá me sentei numa das filas do teatro Gil Vicente, em Cascais, para assistir ao espetáculo dos “Cascotas”, ensaiado por um ator profissional.
Continuando pela linguagem própria do nosso meio farmacêutico, eu diria que “Cascotas” é um bom nome comercial para a substância genérica “Cloridrato de nunca desistir de viver”.
O Renato cantou o “Lisboa menina e moça” com uma “bioequivalência” superior, e ele, a Margarida e todos os demais camaradas de tábuas conseguiram divertir-me e comover-me durante mais de uma hora. A mim, a tal “ilha de pressa” no mar da lentidão que foi chegando de autocarro desde os lares e centros de dia do município de Cascais.
Respirar é um detalhe quase desprezível, porque o essencial de viver é sonhar e fazer acontecer aquilo que julgamos impossível.
Sonhar e trazer os outros para dentro do nosso sonho, generosamente, como quem sabe que o amor será sempre o sal e a pimenta para essa vida da qual nunca nos abstemos, mesmo que os dias, por vezes, nos façam passar por um qualquer pedaço de inferno.
- Quanto tempo existe no espaço de uma hora?
- Não sei, tudo depende da solidão – respondi eu ao mar de Cascais depois de deixar o teatro e de me oferecer um passeio breve até à praia.
Subtraí-me à pressa e sentei-me na mesma hora lenta dos meus camaradas de plateia, e de palco.
Não me perguntem porquê, mas senti no regresso, fazendo a marginal, que tinha ido a Cascais aprender uma lição. Numa “sebenta de riso” cabe matéria muito séria e muito útil para os dias… e para os “exames” do futuro.  

 

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