O ar desenhado pelos pássaros...


Só nos lembramos do ar quando algo ou alguém nos asfixia, interrompendo bruscamente o ato tão natural, e quase desapercebido, de respirar.
No mesmo sentido, há gente que não se dá conta de estar a usufruir dos benefícios da liberdade, mesmo quando, pela sua inexplicável verborreia, atenta contra ela em nome da fantasmagórica autoridade do tempo em que os casacos dos homens eram todos, obrigatoriamente, a preto e branco.
Também os amigos que se entretêm a pendurar palavras e gestos feios no fio de afeto que os une, só se darão conta daquilo que perderam quando essa linha ceder ao peso e se cortar, devolvendo a alma à solidão.
Sempre que estou em Vila Viçosa a passar uns dias com os meus pais, como aconteceu neste período entre o Natal e o Ano Novo, eu sinto de forma muito marcada, que estou a usufruir do ar melhor do universo, e, sentados os três à conversa no serão junto à braseira, eu tenho uma claríssima noção do ouro valiosíssimo e escasso que impregnam esses instantes de que sou feito.
Depois, quando regresso, e porque já não tenho a minha estrada, subo a Avenida em direção à Praça e à variante, fazendo um desvio para entrar no Castelo e na igreja de Nossa Senhora da Conceição.
As portas estão abertas e cheira a mármore lavada, sentindo-se o bulício das mulheres na sacristia. Ali, ajoelhado a rezar, estarei algures, não sei bem, entre um rei que oferece o seu reino, ou a minha avó Natividade, que não saía de Vila Viçosa sem vir despedir-se da Mãe do Céu.
À minha frente e atrás do altar, está o cemitério, e eu nunca saberei quanto doeu a falta de liberdade naqueles corpos que a terra abraça, ou quantos beijos andam por ali a esvoaçar na saudade de infinitamente adiados.
Saio da igreja e regresso ao carro, tão entretido com os meus pensamentos, que até permito que um pombo me assuste, quando resolve voar desde o ramo de uma oliveira até um dos braços de pedra do cruzeiro.
Respiro fundo.
Que nunca me falte a fé, a liberdade, este ar desenhado pelos pássaros, as palavras doces dos amigos, e claro, os beijos perfeitos dos meus pais.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM