Dias que nos dão um ligeiro toque nos ombros…


Num destes dias iremos calar de novo as fronteiras, e poremos no ar, por pura ambição e vontade, os aviões, sentando-nos lá dentro, preparados para voar, sem lastimarmos que alguém atrás de nós, não para de falar, ou de que uma criança chora no banco imediatamente a seguir.
O que importa é que vamos.
Aproveitaremos para celebrar esta tolerância à beira Tejo, comendo dois pastéis de Belém, enquanto escutamos a música de uns saltimbancos, a que antes chamávamos ruído, e apercebendo-nos que os cacilheiros não fazem carreiras para transportar gente entre as margens, mas apenas dançam, muitas e muitas vezes, com as águas do rio, desenhando traços alaranjados aquém ou além da ponte.
Por esses dias, eu já terei acenado à senhora que se cruza comigo todas as manhãs naquela avenida junto à Fábrica da Pólvora, bem como ao rapaz que, encostado à paragem do autocarro, costuma assistir à minha irritação porque o semáforo me parou.
Bem-haja, afinal, o tempo que nos bate nos ombros, roubando-nos à distração, e que nos devolve a capacidade para descobrir gente e afetos, ainda que anónimos e improváveis, atenuando-nos a pressa, e reconciliando-nos com os semáforos da vida.
Acho que quando tudo isto acontecer, eu já terei perdido a capacidade para inventar desculpas e faltar a um jantar ou a uma tertúlia de amigos, já não acharei demasiados, os beijos que se dão à saída da missa, conseguirei saborear um café que não tenha gosto a “urgência ditada pela agenda”, não adirei a ida ao teatro, ao cinema...
Não verei como espera enfadonha, os dez minutos na fila da cafeteria, porque são, na verdade, uma oportunidade feliz para estar com os meus colegas.
Sempre que for à bola, não me sentirei irritado com o senhor que não se cala, e se senta na fila atrás de mim, porque importante, mesmo, é a festa de podermos estar ali.
- Oh Pizzi!
Ele poderá gritar mil vezes que eu não vou ouvir. Estarei concentrado no jogo, porque esse sim, me faz falta e me faz sentir saudades.
Quanto a porta de casa se abrir, e eu puder correr finalmente até ao mar e ao cabo que se vê desde a minha janela, terei aprendido tudo isto, e muito mais, que o tempo parece seguir lento, por forma a dar espaço à sensatez e ao bom julgamento.
Porquê estas lições?
Quiçá porque para os “distraídos” como eu, as lanternas que brilham no olhar da gente se veem melhor quando toda a luz se apaga, e porque, inexplicavelmente, é preciso sentir o peso dos muros sobre o tempo e os caminhos, para aprender o valor infinito de liberdade que tem cada mais pequeno beijo ou cada passo, mesmo que aparentem ser insignificantes, monótonos ou corriqueiros.
Dias que nos dão um ligeiro toque nos ombros…

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