Cravos, vida e liberdade

Em casa da Tia Maria e do Tio João, em Vila Viçosa na Rua de Santa Luzia, um dos meus refúgios preferidos na infância, convivi desde sempre com um casal de irmãos, que não sendo da família por nascimento, o eram por afecto. A Tia Maria, algures pelos anos vinte e trinta do último século, tinha trabalhado em casa dos seus pais e tinha sido a ama que os criara desde o primeiro dia de vida, tendo por eles um indiscutível e indisfarçável querer de mãe.

Há fotos da minha mãe ainda criança ao colo deles na manifestação de um afecto que depois transitou para mim e para o meu irmão de forma muito natural. Crescemos com a sua presença, brincámos com eles e anos mais tarde, já adultos, dava-nos um inegável prazer, conversar e partilhar a vida nas descobertas e em tudo o que ela tem de bom e de menos bom.
Toda esta relação se manteve mesmo após a partida dos meus tios.
O Sr. João Velez partiu também há alguns anos, em finais de Junho, e um enfarte fulminante eliminou quaisquer hipóteses de uma despedida.
A irmã, a D. Manuela, ficou então só, viveu algum tempo em Vila Viçosa antes de regressar definitivamente a Lisboa, tendo mantido sempre entre nós o estatuto de uma familiar presente.
Com oitenta e sete anos, adoeceu há um mês e foi por isso internada no Hospital Amadora Sintra onde desde logo a fui visitar. Pude então conversar só com ela sobre a doença, mas sobretudo sobre os seus planos de um futuro, que à saída, constatei com as enfermeiras, estava destinado a ser demasiado curto.
Na última quarta-feira, dia 25 de Abril, a chuva e o frio quase me iam seduzindo a permanecer em casa, mas felizmente que decidi pôr-me a caminho do hospital para partilhar com ela alguns dos momentos do meu final de tarde.
Encontrei-a mais débil que antes, a dormitar, e apenas uma carícia no rosto a fez despertar do seu sono tranquilo.
Sorriu ao ver-me. Consegui vê-lo de forma clara através da máscara transparente que lhe cobria o nariz e a boca, e que a auxiliava a respirar.
Senti que tinha vontade de conversar e por isso me deixei ficar junto a si durante quase uma hora, sem silêncios.
Falámos do Alentejo, dos cheiros do campo, dos sabores do pão, da primavera e da chuva, das suas saudades da antiga casa alentejana e da vontade de em breve voltar à Vila Viçosa natal.
Comoveu-se quando se referiu à amizade que nos uniu sempre e quando trouxemos à conversa os nomes daqueles que connosco construíram esta teia de família de afectos.
Por ser 25 de Abril, e ela recordava-se, falámos de liberdade, de justiça, dos seus sonhos num país que quis diferente e da militância comunista com que sempre julgou poder concretizá-los.
Falámos de cravos vermelhos e da alegria com ela um dia viu ser símbolo da revolução, aquela que foi desde sempre a sua flor preferida.
Falámos da fé.
Falámos de Deus.
E saí agradecido pelo tempo agradável que passámos juntos, dizendo-lhe adeus, desejando força e ânimo, e trocando sorrisos.
Foi a última vez que o fizemos, jamais o poderemos repetir.
No sábado 28 recebi a notícia da sua partida e este final de tarde de um dia 25 de Abril ganhou de repente o estatuto de tempo único, de preciosidade no contexto da minha existência.
Foi por certo Deus que me convocou para este bombom de afectos e me deu a oportunidade de saborear pela última vez o privilégio da última memória viva do território da minha infinita felicidade da infância, que foi a casa da Tia Maria e do Tio João.
Estou muito grato por isso.
Quero destas palavras fazer homenagem à D. Manuela e à amizade que sempre me dedicou, não podendo deixar de lhe agradecer, a ela e à vida, esta última lição: nunca adiar e viver intensamente cada momento pois ele poderá sempre ser o último.
Até sempre D. Manuela. Sei que um dia voltaremos a estar juntos para a propósito de cravos vermelhos, partilharmos a vida e falarmos de liberdade.

Comentários

  1. Querido mano na morte podemos .
    Acreditar e ficar tristes pela morte de uma pessoa, quando na verdade é apenas a morte que nos impressiona.
    RUi Pereira

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  2. Querido mano adorei as tuas palavras sobre DªManuela
    As pessoas não estão neste mundo para satisfazer as nossas expectativas, assim como não estamos aqui, para satisfazer as dela.
    Temos que nos bastar... nos bastar sempre e quando procuramos estar com alguém, temos que nos conscientizar de que estamos juntos porque gostamos, porque queremos e nos sentimos bem, nunca por precisar de alguém.
    As pessoas não se precisam, elas se completam... não por serem metades, mas por serem inteiras, dispostas a dividir objetivos comuns, alegrias e vida.

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  3. Comentario em cima feito por RUI Pereira

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