Natividade e Francisco


No verão de 1974, enquanto saboreávamos uma liberdade nova e estando eu nas minhas férias grandes entre a segunda e a terceira classe, fiz com os meus avós, Natividade e Francisco, uma das viagens mais fantásticas e memoráveis da minha vida.
Os sonhos, aqueles mágicos e que nos movem, são sempre redigidos pela ambição que existe em nós, ultrapassado o óbvio, o possível, e galgada a fronteira que nos abre à aventura, e por isso, para um rapaz de oito anos nascido e criado em Vila Viçosa, terra da qual se tinha afastado nunca mais de duzentos quilómetros para vir até Lisboa, esta foi indiscutivelmente uma viagem de sonho.
Partimos numa madrugada de Agosto, daquelas que anunciam os dias quentes do Alentejo, num autocarro repleto de conterrâneos, famílias de Calipolenses, que tal como nós os três, se ofereceram nesse verão, um passeio de uma semana pelo centro e norte de Portugal.  
Pela primeira vez na minha vida, visitei locais tão significativos da identidade lusa como o Jardim do Paço, em Castelo Branco; a Serra da Estrela; o Bom Jesus e a Sé de Braga; o Sameiro; o Castelo, o Centro Histórico e a Penha de Guimarães; o Solar de Mateus; o Douro Vinhateiro; o Monte de Santa Luzia, em Viana do Castelo; a Ribeira do Porto; a Serra e o Palace do Buçaco; o Luso; O Portugal dos Pequenitos e a Universidade de Coimbra; o Santuário de Fátima; as Grutas de Santo António; as Portas do Sol, em Santarém, e muitos outros sítios que antes só tinham chegado a mim pelos livros e pela televisão, tendo por isso, todos eles, um lugar cativo no território dos sonhos.
Já tive a sorte de voltar muitas vezes a estes locais, e conto ainda voltar muitas mais, mas a indestrutível e inesquecível primeira vez, foi esta com os meus avós.
Recordo-me que dormimos em Viseu, Guimarães, Viana do Castelo, Porto, Coimbra e Santarém, nunca em hotéis ou pensões, porque a falta de orçamento aguçou-nos o gosto, a nós e a todos os outros, para dormir na rua, sempre junto ao autocarro e junto uns dos outros, nos colchões de esponja transportados, devidamente enrolados com lençóis e mantas, no tejadilho do veículo que nos proporcionou esta aventura de volta a Portugal em “campismo ambulante”.
Em todas as localidades da pernoita, já tinham sido devidamente identificados, os locais de acesso público para a higiene diária, jamais descuidada.
As refeições, simples e muito à base das sopas e açordas da nossa terra, eram confeccionadas com os produtos comprados nos mercados por onde íamos passando, com a ajuda de um fogão a petróleo que era lento mas que nunca nos condenou a comida crua.
Preparávamos as refeições e comíamo-las nos parques de merendas, nunca deixando de as partilhar com todos os outros parceiros de aventura.
Como era hábito na altura, tirávamos fotografias que ficavam armazenadas nos rolos até à revelação feita no regresso a casa, e enviávamos para a família e amigos, postais ilustrados que pela demora do correio, chegavam sempre muito depois de nós.
Durante a viagem, no autocarro, aproveitava-se o tempo para cantar as modas alentejanas, com a ajuda de gaitas-de-beiços e pandeiretas de papel, estas últimas daquelas que tinham gravadas imagens de um traje típico ou de um lugar de Portugal, existindo sempre alguém com gosto e jeito para contar anedotas, que assumindo-se como herói nesta pré-história da “stand-up comedy”, agarrava no microfone existente no veículo da Setubalense, dos Belos de Vila Nogueira de Azeitão, e dava um espectáculo que a todos punha a rir.
A inspiração para o humor e a intensidade do riso, eram sempre alimentadas pelos tintos e brancos, maduros ou verdes, que era obrigatório provar, ou não fosse o vinho, uma marca indelével do nosso grande Portugal 
Não me recordo de quaisquer discussões ou zaragatas entre companheiros de viagem. Tristezas, já todos tínhamos muitas durante o ano, e estes dias tinham nascido definitivamente para serem especiais.
Hoje é dia 26 de Julho, dia do meu patrono, São Joaquim, e de Santa Ana, a sua mulher. Joaquim e Ana são os pais de Maria e por isso os avós de Jesus Cristo.
Hoje é o dia dos avós.
Homenageio os meus avós, eternamente vivos em mim nesta como em outras grandes memórias, e em muito do que sou. Natividade, Francisco, Joaquim e Francisca.
Com a sua simplicidade ensinaram-se como se pode ser grande pelos valores, e com o seu amor sem limites, tornaram especial, o mundo que me ofereceram para eu crescer.
Ao luar de Agosto, deitado entre os meus avós num simples colchão de esponja, acariciado e protegido por eles, na rua e a olhar o céu e as estrelas, garanto-vos, fui rei, fui a criança mais feliz do universo.
Avós, ou o privilégio de se ser amado infinitamente.

Comentários

  1. Encontrei hoje quase por acaso e depois de muito insistência da minha irmã mais velha de que devia procurar. Fantástico! Mais um bocadinho e também ia no autocarro, certamente ao microfone!

    Rosa Redôlho (nome de fadista)

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