Estes dias sem botox…


A meio de uma tarde de primavera, e vindo de norte para sul, cruzei no outro dia, o vale do rio Douro, comprovando pela milésima vez, que esta é uma das rugas mais extraordinárias com que o tempo marcou a face e a idade da Terra.
Horas antes, tinha entrado numa igreja em Vila Real, e tinha-me deparado com a azáfama de duas senhoras que cobriam com panos, duas imagens de santos já colocadas nos andores.
Correndo o risco de ferir a sensibilidade dos meus amigos mais ligados à teologia, permitam-me que vos confesse não ser particular apreciador do tempo da quaresma. Primeiro porque não gosto dos dias que nos afastam das flores, e depois, porque nunca será no deserto que alguém se poderá encontrar: eu sou aquilo que semeio no coração e na vida dos outros, sendo neles que me revejo e, de caminho, encontro a Deus.
Para além de que esta coisa do silêncio e do ruído é tão relativa…
A cruzar o Douro lembrei-me, inevitavelmente, de Torga e de São Leonardo de Galafura:
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e rosmaninho
Se algum dia eu fosse poeta deixaria, assim, os meus versos cravejados no peito solitário de um homem que cruza uma ponte muito alta, e bem a jusante de Galafura.
Se algum dia eu fosse santo, romperia as vestes que o calendário me impusesse, para que, qual rabelo buscando a ribeira, acudir descalço à solidão de alguém, plantando aí gargalhadas e rosmaninho.
Não gosto dos dias do botox e da burka, porque as faces e as vidas escondidas e sem rugas são desertos apáticos, que até podem baralhar a idade e a condição, mas que nos privam dos cheiros da terra, da festa das águas, do voo dos pássaros e do canto alegre das raparigas e dos rapazes na margem de todos os rios.

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