Coronéis


Trinta e cinco anos depois e num assumido ímpeto saudosista, a Gabriela abriu uma excepção na minha alergia crónica, e reconciliou-me com as telenovelas.
Estranho a cor da imagens de agora, sinto a falta da Sónia Braga, do Armando Bogus e do Paulo Gracindo, não acho tanta piada a este Tonico Bastos que não penteia o bigode, o Bataclan da antiga Maria Machadão era mais rico em discrição, faz-me confusão o facto da Jerusa já não ser morena, desagrada-me ter de esperar mais de uma hora depois de terminado o Telejornal, mas o certo é que não resisto à música do genérico e mal a Gal Costa começa a cantar, lá me componho no sofá e… Ilhéus e Jorge Amado, aí vou eu.
Na versão de 1977, o actor José Wilker representava o jovem político reformista Mundinho Falcão, o homem das liberdades que lutava de forma brava contra os terríveis coronéis, os poderosos donos da cidade, feitos assim pela força económica do cacau.
Depois de há alguns anos ter protagonizado Roque Santeiro, o idolatrado falso Santo e Milagreiro de uma cidade do interior do Brasil, este actor encarna agora o personagem do Coronel Jesuíno, aquele temível ser que traído pela mulher, a mata a tiro quando ela está na cama com o dentista.
Ontem, após o episódio da Gabriela e quando já assistia na RTP1 ao programa Prós e Contras que colocou frente a frente parlamentares de todo o nosso espectro político a discutir o que cortar no Estado Social depois de já terem decidido um aumento brutal dos impostos, tudo muito ao estilo de paga a rifa e o prémio logo se vê, não pude deixar de pensar como a evolução das personagens atribuídas a José Wilker, se desenvolve em paralelo com a dos “nossos” líderes.
Carregados de ideias novas e impulsionados pela recente liberdade, respiravam esperança nos idos anos de setenta.
De bolsos cheios pela entrada na Comunidade Europeia, operaram os milagres económicos feitos de alcatrão, rotundas, Expo’s, Euro’s e cursos de formação, e viraram “santos” colocados no altar da pátria por maiorias relativas e absolutas.
E hoje?
Hoje, por incompetência e pela pérfida supremacia dos elevados interesses privados que esmagaram há muito os públicos deveres, emergiram como cruéis coronéis que nos tiram a vida e nos matam em todos os prazeres, dos mais pequenos aos maiores.
E se tiverem dúvidas sobre este novo “estatuto” dos nossos líderes, olhem para o vosso recibo de ordenado, para as contas da luz, da água, do combustível e do supermercado, e vejam se não está lá “escarrapachada” a frase que o Coronel Jesuíno ferozmente repetia para a sua mulher:
- Hoje, vou-lhe usar!  
E tal como a D. Sinhazinha, acabamos invariavelmente… “usados”.

Comentários

  1. Parabéns
    Como dizia a Gabriela há 35 anos atrás, sapato não Sr Nacib, actualmente podia dizer Sr Ministros mais austeridade não
    Rui Pereira

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