Quem não tem uma bicicleta e tem um livro, muito pouco se importa, pois poderá sempre ir de avião para qualquer lado



Quem não tem uma bicicleta e tem um livro, muito pouco se importa, poderá sempre ir de avião para qualquer lado.
Isso pensava sentado no pequeno banco de madeira da Livraria Escolar enquanto lia os livros com cuidado para não lhes estragar a lombada, inviabilizando-lhes a venda.
Seis, sete, oito… muitos anos.
Mas para além dos livros existiam as bolas de serradura envoltas em papel prateado e colorido, que presas a um elástico subiam e desciam como no estranho bailado de um planeta à mercê da minha vontade. Estas bolas chegavam sempre com um saco de torrão ou um brinquedo de lata ou madeira nos dias 29 de Janeiro, Maio ou Agosto, quando os tios e os avós saiam da feira, então no Rossio, subindo a Rua de Três para poderem dar-nos "as feiras".
Os berlindes tilintavam nos bolsos em sacos costurados pela minha mãe, existindo sempre um que era o da sorte e que permitia ganhar o jogo nas três covas em linha que preparávamos na terra; os piões tinham marcas gravadas por mim com um canivete e faziam cócegas quando os púnhamos a rodar na palma da mão; um macaco de corda que tocava pratos e bombo, servia para brincar e para chamar a minha mãe quando fui operado às amígdalas e, entre o paraíso de iogurtes e gelados, não era aconselhável falar alto; um carro do James Bond movia-se a pilhas e tinha um boneco que me assustava ao saltar pelo tejadilho; uma ambulância também a pilhas avançava e recuava quando batia nos móveis, presente de Natal no ano em que o meu pai trabalhou no Baptista Russo.
Nos Trabalhos Manuais fazíamos brinquedos, e eu fiz um Alentejano de capote com a inevitável cortiça, objecto que ainda hoje uso para guardar coisas muito especiais…
E no dia em que fiz três anos, a Tia Carlota ofereceu-me um Lego, o primeiro que eu vi; brinquedo que achei algo estranho porque aquilo que na caixa prometia ser um camião, era afinal um conjunto de peças coloridas e soltas.
Aprendi mais tarde a alinhá-las para construir a prometida viatura, e a realinhá-las de muitas outras formas dando corpo àquilo que ia ditando a imaginação.
Voar como com as páginas de um livro e fazer girar a Terra como uma pequeníssima bola de serradura.
Aprender a conquistar o mundo mesmo sem bicicleta, apesar do Manuel generosamente me emprestar a dele para darmos umas voltas no passeio em frente ao Framar.

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