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Não sei se têm conhecimento, mas em 1918, em Portugal, o primeiro diagnóstico da mortífera Gripe Espanhola, que matou cerca de 2% da população lusa, foi feito aqui, em Vila Viçosa, num trabalhador rural que regressara do país vizinho, da muito próxima Extremadura.
Se juntar a este facto, o de eu ter nascido numa rua, que, chamando-se Rua Gomes Jardim, é conhecida aqui, localmente, por Rua de Três, por nela só terem sobrevivido três criaturas a essa pandemia, poderão imaginar o meu enorme empenho neste confinamento.
Total, não vá existir alguma afinidade genética ou geográfica que se associe ao tempo, que esse, eu bem sei, voa, mas em círculos.
O BPI, num exercício de Marketing com elevado sentido de oportunidade, continua a enviar-me e-mails diários, dizendo que “este é o momento para os seus planos se tornarem realidade”, e eu já estive mais longe de lhes responder, confessando jamais ter alimentado o sonho de me atirar da janela. Porque se este é o momento, que outro desejo radical poderei ter, para lá de reeditar em pleno Alentejo, e com o devido glamour, um final tão emotivo quanto o da Genoveva na sua tragédia da Rua das Flores.
Por falar em glamour…
Devo dizer, e talvez ainda faça chegar esta informação ao BPI, que o melhor e mais esperado momento destes dias, é a ida aos contentores para despejar o lixo.
Faço-o geralmente depois do jantar, e aqueles dez minutos que me separam do meu destino, que fica a cerca de cento e cinquenta metros, são deleitosos e improvavelmente poéticos, na solidão de um jardim, que agora é só meu.
As pedras da calçada abraçam-me, matando a saudade própria do berço que tanto nos quer, e os meus passos, até então, quedos e amorfos no cárcere secreto e improvável do soalho, respondem-lhe com o canto de uma festa que se une ao chilrear dos pássaros e ao reencontro com o vigor da fonte.
Paro sempre para saudar a água, rezo Ave Marias à primavera que ressuscitou o odor das laranjas, por ora em flor, e, junto ao lago, onde os cisnes, preparando o sono, já se acostam na cascata de pedra rasgada de avencas, pressinto-me como o homem do saco preto que ilustrará a história contada às crias, inspirando-as ao descanso.
No regresso a casa, ainda e sempre asséptico, de infortúnios, que não de vontades, desfruto da sombra do cruzeiro, que baila ao serão com os ramos dos plátanos, e cumprimento as rosas, que já trato por tu e sei de cor.
Isto é tudo após quatro semanas de confinamento. Mais duas semanas e faço um poema dedicado à tampa do depósito dos resíduos indefinidos, que não deixa de ser do mesmo tom da lua.
Para a assepsia futura também contribuirão as máscaras de algodão, em dose dupla, que a minha mãe está a costurar, com essas mesmas mãos que já restauraram muitas obras de arte e costuraram vestidos de muitas Burdas.
Nem consigo imaginar o sucesso da minha próxima visita ao Lidl, mas será algum filme do tipo: Ken sai do confinamento e vai às compras para a Barbie fazer uma sopa.
 

No outro dia, quando fui comprar pão e me cruzei com a viatura da GNR que, e muito bem, mandava as pessoas para casa repetindo uma mensagem que se não foi gravada pelo Ricardo Carriço, foi por algum seu parente, uma conterrânea minha gritou desde a fila da farmácia:
- Os que não morrermos, ficaremos completamente loucos.
É óbvio que não.
Estaremos vivos, bem vivos, sãos no corpo e na alma, a celebramos o facto por entre os abraços e os beijos agora proibidos, contando como era bom o momento de ir despejar o lixo.

Um abraço, fiquem em casa e riam-se muito.
Esse é o segredo.

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