O meu Cristo que já não mora nas pedras


Quando visitei o santo sepulcro, um padre de corpo imenso e voz severa, dava-nos ordem para entrarmos em grupos de três ou quatro, assinalando posteriormente o fim dos concedidos quinze segundos de oração, com uma insistente e irritante batida do seu anel de ouro contra uma ombreira de pedra.
Por entre tamanha ansiedade gerada pelo clérigo, ter lucidez para começar um Padre Nosso, será prova de heroicidade de muito poucos.
Não me incluo nesse número restrito.
No entanto, passado algum tempo, e já devolvido ao sol de Jerusalém, dei comigo a pensar que o homem tem absoluta razão quando age assim, a jeito de quem nos diz:
- Vá meninos, despachem lá isso, porque se andam à procura de Cristo, façam-no entre os vivos. Ele passou por aqui, mas já foi há muitos anos.
Não sei se foi por causa do Covid, das subtilezas do destino, dos anos maléficos que usam vir a bordo do início dos séculos... mas é semana santa e eu estou em Vila Viçosa há quase um mês.
Trabalho durante o dia, e sento-me à braseira ao fim da tarde, para atravessar o serão na companhia dos meus pais, a bordo de conversas simples à volta da camilha.
Se eu fizer uma selfie desses momentos, talvez quem a veja só ouse dar-lhe o pouco valor de “mais uma”, das muitas que eu fui fazendo com eles.
É verdade, mas só porque os sorrisos ainda conseguem ir disfarçando, aqui e ali, a dolorosa crucificação de o meu pai, muitas vezes, já não saber o meu nome ou não se recordar de quem eu sou.
São instantes de sepulcro onde nem um Padre Nosso parece acudir-nos ao peito.
Mas então, e a Páscoa?
O crente tem um compromisso com a ressurreição, e por muito que nos doam os sinais das tardes e serões passados junto à cruz, cumpre-nos olhar a vida que persiste nas manhãs de aleluia que andam por aí dispersas, sem que as vejamos por detrás do veludo opaco e roxo daquilo que dói.
Mesmo que a mente nos traia, mantemos a possibilidade do olhar que continua a saber rir, das mãos que se esfregam com creme hidrante, mas quase só para acalmar, da piada enquanto se faz a barba com uma máquina que faz cócegas, dos abraços quando se chora sem saber porquê...
O crente tem um compromisso com a ressurreição e tem como “arma” o amor, para se encontrar a si mesmo, e encontrar-se com Cristo, que continua vivo, por cima de todas as pedras onde Lhe choramos a morte.
Sairei definitivamente diferente desta quaresma e desta Páscoa, e perdoem-me a imodéstia de achar que sairei melhor pessoa.
Um único lamento: perdi demasiado tempo a procurar Deus entre o insignificante sentido das pedras.
 

Com votos de uma Santa Páscoa, recebam um forte abraço com flores lá dentro, porque ainda chove, mas já é primavera.

 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM