De novos ricos a velhos pobres, ou o destino de Portugal.

Recordo-me bem de 1984.
O FMI andava por cá, havia manifestações constantes repletas de bandeiras negras, gritava-se fome nas ruas de Lisboa, havia uma taxa elevadíssima de desemprego, em cada canto só se ouvia falar de crise e até o Herman no Tal Canal, apresentava a moda crise feita de jornais ou tapetes transformados em roupa, parodiando ao mesmo tempo uma Filipa Vacondeus, cozinheira mestra na arte de aproveitar as sobras.
Depois de uma maioria de direita (AD) e de uma gorda maioria do centro (Bloco Central PS e PSD), a política vivia também de crise e de indefinição.
Vivíamos na esperança de entrar na “Europa”, leia-se CEE, o que veio a acontecer logo ali, em 1986.
E veio então o dinheiro e entrou-se na cultura do subsídio, indutora da doce ilusão da riqueza que conduziram sem grande resistência aos tiques e aos hábitos pérfidos do novo-riquismo.
Tornámo-nos importantes.
Deixámos de alugar casa para viver porque em cada um de nós nasceu alma de proprietário e com os bancos a incentivar comprámos todos a nossa casinha. Alguns, mais ousados, compraram a da cidade, a do campo e a da praia.
Substituímos o aprender pelo fazer cursos. Era fantástico, não existiu Português que não tivesse feito um curso da CEE. Pagavam-nos para termos um diploma, e sem esforço, que exames e testes eram coisa de outro tempo.
Para que cumpríssemos o nosso maior desejo de cada Português um doutor ou um engenheiro, abrimos universidades às centenas para pulverizar as licenciaturas e todos as pudéssemos fazer nem que tivéssemos de fazer os exames aos domingos e por fax.
Tínhamos encontrado o nosso destino de sucesso, e o trabalho do campo, da indústria ou da construção civil, reservámos para os que de leste chegaram até cá quando o muro abriu as fronteiras.
Fomos mestres na arte de substituir o trabalho pelo emprego.
Quer dizer, pelo emprego ou pelo desemprego, porque o estado arranjou um mecanismo que permite o nosso sustento, de forma razoável sem que tenhamos grande necessidade de trabalhar. Venham os Brasileiros e tirem-nos as bicas que entre ganhar 500 euros a trabalhar a um balcão ou ganhar os mesmos estando em casa, a decisão é fácil.
Quem é que ficava disponível para assegurar a audiência dos programas da manhã das televisões fantásticas e tão educativas que no principio dos anos 90 se juntaram à RTP?
Fizemos obras públicas em grande e sempre a bater recordes: uma das pontes maiores da Europa, uma Expo que foi um êxito e nos revelou ao mundo e um Campeonato Europeu de Futebol em 2004 com estádios novos construídos para receberem... dois jogos. Em 2000 a Holanda e a Bélgica juntaram-se para organizar o Euro e em 2008 a Áustria e a Suiça fizeram o mesmo, mas nós não, nós somos melhores e organizámo-lo sozinhos. Foi lindo.
E as auto-estradas? Construímo-las por todo o lado e algumas até completamente gratuitas, em principio, claro. Onde é que nós andaríamos com os nossos carros novos e os nossos jeep’s? Na terra batida, não? Sim porque cada um de nós tem um jeep, para além de um carro para ir às compras e da mota do filho, está bem de ver.
E os recordes que nós batemos a falar ao telemóvel? Compramo-los aos milhares e todos falamos muito entre todos. É uma interacção bestial.
E os Centros Comerciais? Temos os maiores da Europa e sempre cheios. É ver ali, sobretudo aos fins-de-semana, o brilho dos cartões de crédito, porque o banco facilita tudo.
Tantos exemplos, tantos tiques e tantas expressões de novo-riquismo.
O castelo de cartas da nossa superficialidade, do facilitismo, da mentira e da ilusão, ruiu quase sem que déssemos por isso.
Hoje, quase trinta anos depois, o FMI voltou e com ele voltou a nossa condição de eternos e velhos pobres, e estendemos a mão à Europa e ao mundo com o despudor da cigarra que cantou demasiado no verão da fartura.
E até a Filipa Vacondeus voltou aos best-sellers escrevendo livros sobre cozinha low cost.

Comentários

  1. Muito bem escrito, como sempre! E, infelizmente, tudo verdade! No fundo, os portugueses a viverem como os seus governantes! Gasta-se o que se tem e o que não se tem. Depois... logo se vê!

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  2. Estou plenamente de acordo com o comentário acima. Agora só fico à espera de ver essa escrita num livro. Será o próximo projecto? Quanto ao tema em si, é pura verdade que todos têm gasto o seu parco dinheirito sem olhar ao futuro. Mas que futuro? E os exemplos que esperamos ver dos outros? Se o dinheiro é de todos, porque é que uns o gastam e outros não? Está definitivamente instalada a democracia, a das acções descontroladas, porque infelizmente os direitos de cada um não acabam onde começam os dos outros. Como dizia um amigo meu, o que nós precisamos não é do FMI, é do FBI.

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