Essa insuspeita ligação entre as cavalariças e a amizade

Tenho a noção de que estou em pleno gozo do meu último fim-de-semana prolongado pois com a reforma “troikiana” dos feriados, as pontes ficarão reduzidas a estruturas de engenharia para cruzar estradas ou cursos de água, deixando definitivamente de existir as que ligam feriados a fins-de-semana e vice-versa.
Por isso, tal como acontece com o último pedaço do bolo, o último bombom da caixa ou a última gota de cerveja, ele me está a saber tão bem.
E depois, para saborear Vila Viçosa em plenitude, é preciso muito mais tempo do que apenas e só o que nos é oferecido entre sexta e domingo. Para entrar com eficácia na dimensão mais profunda das memórias é necessário esquecer o relógio e relaxar, deixando-nos embalar pela “calma” alentejana.
Ontem resolvi deixar o carro na garagem e “viajar” a pé até à zona dos supermercados onde se abastecem os meus conterrâneos, tendo assim a possibilidade de passar ao portão da minha Escola Secundária, a antiga, a que teve as suas instalações provisoriamente instaladas durante anos nas cavalariças do Paço Ducal.
A Vila terminava então ali e para lá do vizinho Depósito das Águas que tinha uma cegonha metálica com uma mensagem de boa viagem aos forasteiros que nos visitavam, só ousavam passar os atrevidos casais de namorados que pagavam com o beliscar da sua reputação, a ousadia de responder afirmativamente aos impulsos das primeiras paixões.
A rua íngreme do Terreiro do Paço até ao portão da escola, está agora vazia de gente e preenchida por este tempo, apenas pelos milhares de folhas de plátanos que não resistem à invernia. Era então a rua mais concorrida da Vila e a que, tendo em conta os habituais transeuntes, tinha uma média etária mais baixa. Circulava a juventude Calipolense e também, e se bem me lembro, a de Borba, Alandroal, Bencatel, Pardais, São Romão, Mina do Bugalho, Cabeça de Carneiro, Terena, Ribeira, São Tiago de Rio de Moinhos, Rosário, etc. Não podendo esquecer as dezenas de rapazes que habitavam então o Seminário de S. José e que também frequentavam a mesma escola que nós. Mais vocacionados para o matrimónio do que para o sacerdócio, eram eles também muitas vezes “isco” para as meninas namoradeiras da Vila e das redondezas, numa versão “Morangos com Açucar” versão religiosa e anos oitenta.
Não resisto a espreitar ao portão de ferro e constato que embora tenham feito algumas alterações ao espaço para o devolverem às suas funções de cavalariça, e acolher parte da exposição do Museu dos Coches, os edifícios principais que acolhiam a escola, estão lá todos.
À direita está o picadeiro que servia de ginásio e onde só nos era permitido ter aulas se não chovesse pois o telhado pouca resistência colocava à passagem da água. As traves metálicas deste mesmo telhado serviam de pretexto para adaptações locais de todos os desportos pois impedindo a livre circulação das bolas, era necessário criar regras específicas para que os jogos não se apagassem e deixassem de ter interesse. Por exemplo, se no voleibol a bola batesse duas vezes seguidas na trave do tecto, o jogo passava para a outra equipa.
Em frente estão os dois pavilhões, o da esquerda onde tínhamos aulas e o da direita, que permanecia com mais aspecto de cavalariça, e que nos servia de bar e sala de convívio.
No pavilhão das aulas, um simples pano de tijolo que ligava as colunas centrais permitia dividir as salas do corredor, permanecendo neste último as manjedouras de pedra, com as argolas para prender os animais, havendo castigos para aqueles que em períodos de aulas as fizéssemos bater contra as pedras, criando um ruído não muito agradável.
Ainda lá estão as casas do lado esquerdo onde funcionava a cantina, a secretaria e algumas salas de aula num corredor estreito no primeiro andar que se assemelhava ao corredor de um comboio.
Desapareceram obviamente os pavilhões pré-fabricados que tinham implantado ao fundo do espaço e onde tínhamos as oficinas de mecânica ou as aulas de desenho.
Também eram míticas as histórias contadas sobre encontros amorosos por detrás destes pavilhões, mais uma vez e sempre, tendo a descarga hormonal da adolescência como justificação.
Olho para o espaço e vejo como está bonito, e como ficam bem os limoeiros que salpicam de verde e amarelo o brando alvo com que mantêm todas as construções.
Mas não resisto a ter saudades dos amigos que comigo partilhavam as aulas, os momentos de recreio e que comigo saiam depois ao portão para juntos voltarmos a casa cruzando o Terreiro do Paço, a Rua dos Fidalgos e a Praça.
Com a Zinha, a Zé Ramalho, a Tina, a Guida Paulino e o Paulo Ratado, talvez inspirados por aquele ambiente de reis e rainhas, sonhávamos alto e partilhávamos esses sonhos e as muitas ambições que carregávamos para o futuro.
E quem um dia partilha sonhos, constrói uma amizade indestrutível porque assente naquilo que é mais íntimo em nós.
Hoje, senti saudades desse tempo, senti orgulho por tê-lo vivido e senti sobretudo gratidão pela vida me ter dado o privilégio de não crescer sozinho e ter crescido rodeado pela melhor gente.
Viva a amizade.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM