Os Natais dos dias simples

A simplicidade dos nossos dias Calipolenses fazia sobressair enormemente os dias especiais que eram os dos nossos Natais.
Não que deixassem também de ser simples, nós é que os tornávamos diferentes pelo que melhor que nos vestíamos, comíamos, bebíamos e também, e sobretudo, pela alegria com que os preenchíamos, celebrando o estarmos juntos e em família.
A alegria expressava-se pelo canto tradicional e acompanhávamos o “Eu hei-de dar ao Menino…” com as Roncas que construíamos colocando a pele de um animal, geralmente de um coelho, a tapar a boca de um recipiente de barro ou de lata, sendo esta cobertura perfurada ao centro por uma cana que friccionávamos molhada, criando uma ressonância perfeita para acompanhar as nossas vozes mais ou menos afinadas. Há medida que a noite avançava e os copos se iam esvaziando, aumentava a vontade de cantar, mas também a desafinação.
No jantar do dia 24 comíamos peixe e este no Alentejo é sinónimo de Sopa de Cação. A moda do bacalhau com couves veio mais tarde após o processo de globalização gastronómica à escala nacional.
Depois da meia-noite e pelo dia 25 regalávamo-nos com carne de porco frita temperada com pimentão vermelho, peru assado, canja de galinha do campo, filhoses enroladas, azevias de gila, de grão e de amêndoa, nógados, borrachos, sericá, arroz doce, etc. Acompanhávamos os doces com chocolate quente, o melhor que já bebi até hoje, feito a partir de um preparado que se comprava a peso e em sacos de plástico transparentes, na saudosa mercearia, requintadíssima, Pérola Calipolense.
É impossível esquecer o sabor destas iguarias e esquecer também a preparação destas refeições, sobretudo se tivermos em conta que os animais, galinhas e perus, eram comprados vivos e mortos em casa.
A propósito de perus vivos, recordo-me de um Natal em que nos juntámos em Lisboa em casa dos meus tios, tendo a minha avó decidido que nesse ano ensinaria aos meus primos nados e criados na capital, como era um peru vivo e com penas.
Fizemos a viagem de comboio entre Vila Viçosa e o Barreiro, depois a travessia do Tejo de barco e mais tarde a viagem na carreira 18 do eléctrico entre o Terreiro do Paço e a Ajuda, com uma perua viva dentro de uma cesta, semi-camuflada para que pudesse respirar sem ser descoberta.
Quanto mais nós queríamos que ela permanecesse calada mais ela cantava quando algum revisor se aproximava, numa verdadeira saga de “Maria Papoila” na versão anos setenta.
Não sei como ficaram os meus primos no fim da história, mas suspeito que muito traumatizados pois a imagem da bicha a esvair-se em sangue no chão da cozinha, ultrapassou qualquer prazer pelo encontro com o animal vivo.
O número de presentes era inversamente proporcional ao desejo que tínhamos de os ter.
O dinheiro não abundava e, brinquedos, tínhamos em geral apenas um, pois os familiares e amigos aliavam-se aos nossos pais e ajudavam-nos a compor os guarda-fatos, oferecendo-nos pijamas, camisolas, de malha e interiores, meias, cuecas e até ceroulas, que quase todos usávamos por essa altura.
Para nós crianças, quem trazia os presentes não era o Pai Natal mas sim o Menino Jesus, aliás, o próprio presente era muitas vezes designado por Menino Jesus, sendo frequente ouvir expressões como “aqui tens o meu Menino Jesus para ti”, num interessante e bonito gesto, chamando Jesus aquilo que partilhávamos uns com outros, expressando o amor ou a amizade que nos unia.
Também isso hoje é diferente e com frequência recebemos felicitações com “Seasons Greetings” em vez do habitual “Merry Christmas” pois há o medo de ofender os não cristãos.
É estranho este acto de retirar Jesus do Natal pois assemelha-se a comemorar um aniversário impedindo o aniversariante de entrar na festa.
Ou então é apenas e só mais uma marca da superficialidade onde hoje nos situamos nunca procurando os porquês, pouca vezes nos interrogando sobre as razões para o que fazemos e vivemos.
No meio da sofisticação da nossa existência falta-nos tempo para procurar a essência e voltar às coisas simples, preocupando-nos apenas com o ser feliz e com fazer os outros felizes, no fundo os segredos de um grande Natal, a receita para um verdadeiro Natal.

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