Morrer sozinho

Entrámos quase ao mesmo tempo para a empresa onde ainda hoje trabalho.
Nunca nos cruzámos em departamentos ou projectos e por isso o nosso relacionamento, embora no espaço profissional, foi sempre de âmbito muito pessoal.
Ao pequeno-almoço, ao almoço ou na volta pós-almoço que dávamos com os colegas pelo jardim, falávamos de tudo e de nada em especial. Recordo-me sempre da forma como orgulhoso falava da sua família e também e sobretudo, de que nos riamos muito.
Chegou um dia em que eu permaneci na empresa e ele saiu.
Nunca mais o vi e só fui sabendo notícias à distância, e estas, eram invariavelmente a via crucis dos tempos modernos: desemprego, divórcio, separação dos filhos, perda de auto-estima, falta de forças, de vontade e sobretudo de oportunidade para arranjar outro emprego…
A partir de determinada altura deixámos de ter notícias e procurámo-las afincadamente. Sempre que nos juntávamos ou nos encontrávamos com pessoas que sabíamos serem amigos comuns, lá vinha a pergunta:
- Sabes o que foi feito dele?
Passaram-se anos e para mim as notícias só chegaram hoje.
Há algum tempo atrás, e estranhando o facto de não atender o telefone, uma sua irmã foi à casa onde ele vivia só e encontrou-o morto, mas com o telefone na mão.
Por certo faltaram-lhe as forças e não houve tempo para que de dentro do seu poço de solidão conseguisse chamar alguém.
Neste parecer termos tudo e estarmos tão perto de tudo e de todos, neste mundo que temos a sensação de dominar, há ainda gente muito próxima de nós que morre de solidão e apenas e só com a solidão.
Ninguém merece morrer sozinho. E os bons e os mestres de afectos ainda muito menos.
Hoje sinto-me triste.
Em primeiro lugar pela partida do Carlos e depois, e sobretudo, pela noção de responsabilidade e cumplicidade com a solidão que fere e mata, porque mais do que viver, empenhamo-nos em sobreviver.
Demasiado centrados em nós próprios, aceleramos a solidão dos outros, esquecendo-nos que ao faze-lo, só estamos, definitivamente, a cavar a nossa própria solidão.

Comentários

  1. Que sintonia com as tuas palavras meu amigo!
    Como entendo esta historia e este homem.
    Como sei o que é ver um dos nossos afundar-se neste lodo de perder tudo ...
    Mas também sei que não fui capaz de "pirar-me"...tinha sido bem mais fácil...
    Correr para aquele lodo ,sem medir forças nem resistências foi o segredo.
    O tal...que diz:" o essencial é invísivel para os olhos..."
    Agora de longe,olho para aqueles tempos de risco e entendo que "só se vê bem com o coração."

    oxalá cada um de nós arrisque todos os riscos!,porque o risco maior é viver sozinho 1000 anos de "segurança" ,1000 anos mornos.

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM