O cerco

11 de janeiro de 2012 / 7.30h
Chego ao IC19 e não reconheço aquela que durante muitos anos foi uma das vias mais congestionadas do país, definitivamente a mais problemática das entradas em Lisboa, apelidada então de “Itinerário Caracol”. Do nó do Cacém ao nó da CREL, os oito quilómetros que antes, a esta hora da manhã, fazia em três quartos de hora, faço-os hoje em cinco minutos.
A crise, associada ao aumento do preço dos combustíveis, deixou os carros nas garagens e nas pracetas, reconciliou a população com os comboios e por certo fez com que a célebre Associação dos Utentes do IC19 tivesse virado uma agremiação ao estilo de reunião de antigos alunos ou uma espécie de equipa de saudade composta por futebolistas reformados.
O pensamento transporta-me então para o carrocel da crise:
Imagino que o conforto da alternativa comboio saia beliscado por um aumento brutal de todos os transportes públicos, medida aliás bem explicita no memorando de entendimento com a Troika. Valha-nos então que os carris nos façam chegar cedo a Lisboa e poder ir tomar um café com tranquilidade.
Pois é! Mas a crise fez subir o IVA na restauração e o café está mais caro. Melhor mesmo é ir trabalhar e esperar pela hora de almoço para descontrair um pouco.
Descontrair? Ilusão. Aumentaram as deduções sobre o subsídio de refeição e cada vez se recebe menos dinheiro. Um farnel trazido de casa é a solução para retemperar energias e tentar sair cedo do trabalho para chegar a casa a tempo de fazer algo.
Cedo? Impossível. Com a crise há que dar mais meia hora ao patrão. Mas mesmo assim pode ser que dê para chegar a casa a tempo de ir dar uma corrida no jardim público que há na urbanização.
Correr no jardim? Nem pensar. A crise aumentou a criminalidade e assim ao fim da tarde é um perigo andar por ali. Ainda me arrisco a que me roubem algo ou que me apliquem alguns “tabefes”. O melhor é ir para um ginásio.
Ginásio? Pode ser. Mas há algum tempo que foi assumido como produto de luxo e os preços e impostos subiram vertiginosamente. Vou antes ao supermercado que há ali perto de casa.
Bem, aquele que está mais perto de casa, não. Esse com a crise fugiu do país e foi-se a pagar impostos para a Holanda. Vou ao outro que é mais longe e até me ajuda a pagar a conta da eletricidade.
Por falar em eletricidade, o melhor é não ligar o aquecimento ao chegar a casa. A conta aumentou consideravelmente com a crise. O melhor é enrolar-me numa manta e ver televisão.
Televisão? Só se ainda a tiver porque não entendo muito bem as explicações do Paulo Bento e do Pedro Granger e parece que mais dia, menos dia, ou compro uma nova ou lhe aplico uma caixa, ou então fico sem ela.
Definitivamente parece que o melhor que a malta faz é mesmo ir dormir.
O cerco da crise é demasiado apertado.

11 de janeiro de 2012 / 8.00h
Já estou cansado de pensar na crise.
O rádio dá as notícias e proponho-me ouvi-las: maçonaria, nomeações políticas, crise…
Desisto.
Coloco um CD: “Top Eurovisão”.
Venham de lá os ABBA, a Massiel ou a Dana Internacional para me animarem e darem forças para um dia longo de trabalho.

11 de janeiro de 2012 / 21.00h
Regresso a casa no meu carro. Felizardo.
Escolho um CD e ponho música. O corpo agora pede-me a voz da Kátia Guerreiro a cantar versos da minha conterrânea Florbela Espanca: “Rasga esses versos que te fiz amor…”.
Chego à janela e olho a lua.
Uau!
Grande, redonda, fabulosa…
Não há de facto luar como o de janeiro.
Momento perfeito de som e de olhar.
Menos mal que ainda não inventaram o ICBNA (Imposto sobre a Contemplação de Belezas Naturais e Artísticas) e a crise não chegou aqui.
Afinal há mesmo vida para além do deficit.
Pois há. Pena é ser tão pouca.

Comentários

  1. Amigo Joaquim, ainda bem que há alguém que encontra a paz e a harmonia de espírito no seio da crise e que nem quer ouvir falar dela, onde há outros que encontram contrariedades sem fim. Infelizmente nem todos podem ter carro, telemóvel e computador pagos pela empresa e em vez de se acomodarem têm de lutar, há sempre a possibilidade de em vez de nos acomodarmos no nosso conforto, lutarmos para que todos tenham uma vida melhor, mas isso só se consegue reagindo e lutando, porque nos tempos que correm não podemos apenas contemplar, temos de agir, o infortúnio não calha apenas aos outros, um dia pode bater-nos à porta e é sempre bom podermos contar com um ombro amigo disposto a ajudar e a lutar por nós.

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  2. Li atentamente o post e o comentário e não encontro relação, por mais que me esforce. No post não encontrei descrito a actividade que vai das 8h às 21h. Entendo que nesse período existe trabalho que, com a crise a chegar às empresas, só o trabalho a sério pode evitar que se afundem. Entendo por isso que, hoje, é mais importante cada um, no seu posto de trabalho, dar o maximo para que, possamos ser competitivos. Vencer outros paises que, por circunstãncias várias têm mão de obra a preço da uva mijona. Contemplar a natureza no final de um dia de trabalho só poderá fazer bem ao ego. Viver faz parte da vida. Quem não encontra um tempo na sua vida para viver e contemplar a familia, filhos ou sobrinhos que crescem e que riem de forma ainda inocente, apoia os seus que no final de uma vida dura requerem todo o nosso apoio, a natureza que hoje nos sustenta e que tanto nos esquecemos dela...não me parece que viva. Não está facil viver! mas o dificil não é viver, é saber viver. Eu trabalho e nas horas vagas, trabalho e no final do dia gosto de de olhar o luar de Janeiro, ouvir o CD no carro, porque infelizmente onde vivo não há transportes publicos compativeis com o meu horário. Tenho telemóvel e computador da empresa, mas trabalhei para o ter. Foi duro! Foram muitos anos fora da familia, muitas horas por dia de trabalho, mais de 15h por vezes. Sigo indicadores de produção! levo nas "orelhas" quando não chego acima dos objectivos. Não passo um fins-de-semana que não trabalhe 4 a 5 horas por dia. E quando me chegar a crise e tiver que ir pintar paredes ou vender empadas na rua porta a porta, vou! A crise só existe quando a imaginação falta. Temos que suportar a boa merda que os nossos politicos fizeram? é verdade! Podemos fazer algo? não sei! As pessoas falam, falam, fazem greves, mas o facto é que nada muda. Claramente estou 100% de acordo com o post, e claramente contra o comentário. Neste país é dificil dar a cara. É mais fácil gritar numa manifestação que dizer claramente o que pensamos. Na manifestação somos anónimos. Esse é o problame do nosso país: sermos anónimos. O problema do nosso país não é a crise é a falta de cultura e responsabilização das pessoas: na educação dos filhos, no trabalho, no apoio aos seus.

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