Uma bica cheia…

Eram os sábados que me proporcionavam um dos primeiros prazeres que descobri em Lisboa quando aqui cheguei em 1984.
Manhã cedo, aproveitando aqueles raros momentos em que os carros, os eléctricos e a gente, não conseguem abafar o ruído dos nossos passos na calçada, saía do Príncipe Real onde vivia, descia pela Rua da Rosa até ao Chiado, para através da Rua do Carmo chegar ao Rossio e sentar-me no Nicola a ler o jornal ou um livro, enquanto o corpo acabava o seu despertar pela força e pelo aroma de uma bica quente.
O Nicola respira Bocage por todos os poros, e muitas vezes, quando os olhos descansavam da leitura e miravam para o infinito arrastando com eles o pensamento, imaginei que terá sido por certo por ali, e pela força da sua solidão de poeta, que um dia lhe surgiu esta necessidade de se unir ao poeta maior da lusitanidade, escrevendo:

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!


A busca das cumplicidades para a construção do conforto de nunca nos sentirmos sós.
Hoje, sentei-me a tomar uma bica no Nicola, não no do Rossio, mas num dos que resultaram da sua multiplicação e espalham o seu conceito de café, enriquecendo e dando um toque Português aos novos espaços comerciais.
Uma mesa simples e redonda, duas cadeiras, as duas inevitáveis bicas, dois “eus” soltos e sem reservas e, claro, o conforto feito das cumplicidades.
Mais do que isso, o conforto maior do universo, que é sempre aquele que nasce do sentir da oferta do olhar despojado e terno de alguém, expressando disponibilidade para o encontro de almas e valorizando pela atenção, tudo o que verdadeiramente carregamos na nossa e se manifesta por palavras, gestos e pela força do nosso olhar.
É assim que se vive e é desta forma que se mata a solidão.
É assim que a pretexto de uma bica se constroem bons e grandes sentimentos.
E já agora chamemos outro poeta, Fernando Pessoa, para nos lembrar que “são os sentimentos que conduzem as sociedades, não as ideias”.
E quem fala de sociedades fala de Homens, fala de nós, fala de futuro e fala de um fado, destino que terá sempre a cor viva e alegre de sabermos que jamais, por um só segundo que seja, voltaremos a sentir-nos sós nessa imensidão da planície que nos viu nascer, nos fez assim e nos condenou a ser felizes.

Comentários

  1. "Há palavras que nos beijam"

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  2. "Há palavras que nos beijam"
    "Como uma criança antes de a ensinarem a ser grande,
    Fui verdadeiro e leal ao que vi e ouvi."

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  3. Sente-se que as tuas palavras cresceram em ti. Parabéns!

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