A liberdade está a passar por aqui

À já clássica pergunta:
- Onde estavas no 25 de Abril de 1974?
Terei de responder:
- A frequentar a 2ª classe na Escola Masculina de Vila Viçosa.
Apesar dos meus sete anos de idade, recordo-me bem dessa 5ª feira de tempo chuvoso, vindo-me logo à ideia a inquietação sentida nos adultos que me cercavam, pela escassez de informação que ia chegando à nossa terra, a duzentos quilómetros do epicentro da revolução.
Cedo me apercebi de que algo importante se passava porque a vida mudou a partir desse dia, fazendo com que a previsibilidade do tempo antigo se transformasse num tempo de coisas novas e diferentes.
Passei a ver cartazes coloridos espalhados pela vila, as pessoas passaram a manifestar-se e a gritar palavras de ordem, lutando por tudo aquilo em que acreditavam e repudiando o que de todo não queriam. Liberdade, povo unido, vitória e igualdade, passaram a fazer parte do vocabulário do dia-a-dia.
Passei a ouvir falar de política e passei a ouvir confrontar ideias, porque todos, mesmo todos, pelo voto, eram agora chamados a dar o seu parecer relativamente ao futuro.
Até a minha escola recebeu raparigas e passou a ser mista, rebaptizada de Escola nº1 de Vila Viçosa.
Hoje, passaram 37 anos sobre esse dia, e com os meus 44 anos de vida, tenho a consciência clara de que esse foi um dia marcante, talvez o maior para a minha geração. Foi por esse dia que em 37 dos 44 anos pude viver em liberdade, a ser quem quero ser e a poder expressar o que sinto e quero.
Tenho a consciência clara de que sem este dia e esta revolução eu teria sido muito menos feliz e porque nasci no tempo dos uns e dos outros, eu, por ser dos outros, jamais poderia ter tido sem o 25 de Abril de 1974, as oportunidades que tive e que fizeram de mim o que sou hoje,
Tenho a certeza de que me teria sido dada apenas e só a oportunidade de dar continuidade à pobreza honrada dos meus avós, e por certo muitas oportunidades de continuar a servir um bando de bem instalados que com o dinheiro comprou o poder que conduzia à exploração de tudo e todos.
Não vivemos num regime perfeito e dessa imperfeição tenho dado muitas vezes conta neste Pomar, mas o regime que temos hoje é indiscutivelmente melhor do que aquele que existia antes de 1974, e penso que é sobre ele que deveremos com afinco construir os nossos dias do futuro.
Quis o destino que eu me encontrasse a cumprir o Serviço Militar na farmácia do Hospital Militar Principal, em 1992, na altura em que nesta unidade hospitalar faleceu o capitão Salgueiro Maia, o ícone maior da revolução dos cravos.
Apesar da enorme proximidade física, lamento não ter tido a oportunidade de lhe agradecer o facto de ter mudado o nosso tempo para que, entre muitas e importantes coisas, em muitas gerações da minha família eu pudesse ter sido o primeiro a licenciar-me numa universidade pública portuguesa.
Em muitas gerações de gente com as mesmas capacidades e muito mais mérito do que eu, mas sem a mínima oportunidade de o fazer porque nasceram no ponto errado do calendário da liberdade.

Comentários

  1. Ontem, como era 25 de Abril, resolvi ir ver o que a lisboa habitual tinha para oferecer. Comecei pela Alameda D.Afonso Henriques, porque era o mais perto de minha casa e era habitual haver festa, mais ou menos, rija. Qual quê? Uns putos a jogar à bola, uns cães a fazer as suas necessidades e os eternos reformados a jogar às cartas. Desci a Almirante Reis, a nossa Chinatown, e uq evi mais? Chineses à porta das lojas, indianos à porta das lojas e pouco mais. Cheguei ao Rossio e havia um palco onde um velhote tocava viola e um menos velho cantava umas coisas habituais. Subi ao Chiado e havia muita gente nova a olhar para montras e muita gente a passear a pé para aproveitar o belo dia de verão. Já agora fiquei a saber que no cimo da Rua do Carmo abriu uma gelataria Santini, não é mau! Voltei ao Rossio e, nessa altura, estavam a reunir em cima do mesmo palco alguns políticos, mas confesso que não fiquei à espera para saber o que se ia passar. Entrei no Metro e voltei para casa. Já não existe 25 de Abril em Lisboa. Vou ficar a aguardar pelo 1º de Maio. Mas como já existem tão poucos trabalhadores, temo que me vá acontecer o mesmo. E viva o velho!

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  2. Meu caro, será que essa escola onde estava na 2ª classe é a mesma que hoje o sr. PM está a fazer campanha para mais uma das muitas eleições que a nossa democracia já nos deu? Com tantas eleições ja passadas será que ainda está para nascer alguém que leve este país ao rumo certo? Ou será que está numa qualquer 2ª classe? seja como for, que cresça depressa pois estes que estão por lá não prestam para homenagear a vida de homens como Salgueiro Maia.
    Paulo E

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  3. Eu gosto do meu amigo Joaquim. Habituei-me a considerá-lo pela sua educação esmerada, pela sua postura correcta, pelo seu humor elegante, pelo seu profissionalismo elevado. Agora, através do seu blogue, partilha connosco a sua perspectiva de vários acontecimentos, de forma aberta, sem defesas nem ataques. Sem querer assumir qualquer papel censório, custa ver que tanto trabalho da sua parte (e sabemos que ele é um homem ocupado), não é devidamente reconhecido pelos seus seguidores/"amigos". Não que o Joaquim alguma vez o tenha mencionado, mas penso que seria de estimular um pouco mais de atenção, da nossa parte, às suas bem colocadas visões, através de comentários escritos. Sempre pensei que um blogue seria uma forma de comunicação com, pelo menos, duas vias (dialogue?). Não podemos, ie, não devemos continuar a proceder como se esta página do Joaquim fosse um jornal diário gratuito. Gastemos alguma da nossa energia a responder-lhe. Será agradável para todos. Desculpem a minha intervenção mas, cada qual é como é.

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