A infernal vertigem do tempo.

O velho Largo dos Capuchos, formado pelo triangulo das igrejas de S. Luís, S. Tiago e Senhora da Piedade, cumprindo a tradição calipolense de cada largo ter três igrejas, no segundo fim-de-semana de Setembro, cobre-se de festa e converte-se na sala de visitas de onde qualquer natural de Vila Viçosa jamais quer estar longe.
Ali, iluminados pelas luzes do arraial, andamos numa azáfama tão grande entre os Capuchinhos e as igrejas, a pesca ao pato, as farturas, as quermesses e o concerto da banda filarmónica no coreto, que até nem damos conta que às tantas já só respiramos pó, tal a quantidade de pés que se movimentam no piso amarelado e arenoso que cobre o largo.
Antes que chegue a madrugada e antes que soem os morteiros que dão fim ao fogo de artificio, verdadeiro tiro de partida da corrida que põe os calipolenses de regresso às suas casas na vila, a pé porque é mais saudável e não há espaço para carros, o mais divertido e saboroso da festa é encontrar os conhecidos, os amigos de muitos anos e matar as saudades.
Às vezes nem é preciso dizer nada, nem é necessário sequer ter um grande grau de intimidade com quem nos cruzamos. Basta olhar em volta e sentirmo-nos rodeados pela nossa gente, para que se nos aconchegue o espírito desse conforto que é feito de estarmos em nossa casa.
Este ano lá estive como sempre, e não sei se foi resultado de mais intensidade das lâmpadas do arraial ou quiçá resultado dos efeitos depressivos da troika, mas a frase que mais ouvi e que simultaneamente mais vezes me acorreu ao espírito para dizer a outros, foi:
-Eh pá. Estás tão velho(a)!
A Moody’s deve estar a fazer escola por cá e a arte de pôr no lixo, neste caso a auto-estima dos demais, deve estar a entranhar-se entre a malta lusitana.
Ou então as rugas, as carecas, os cabelos e barbas brancas, as barrigas, as ancas largas e a celulite, estiveram em grande evidência, mais do que nunca, na festa de gala da família calipolense.
Será culpa da própria crise?
Será que ela nos envelheceu abruptamente?
Ou será que neste ambiente de negativismo generalizado nos concentramos mais no lado lunar e escuro da vida?
Penso que não!
O problema está no tempo, na forma como nós o acelerámos criando uma espiral vertiginosa impossível de abrandar.
Os dias persistem com 24 horas e as horas com 60 minutos mas a vivência do “pacote de preocupações e prioridades” da nossa vida (carreira, casa, filhos, etc), impede-nos de ter a noção do valor do segundo e do minuto e, faz com que a nossa unidade mínima de contagem seja a década.
Empenhados nesta azáfama da vida, permanecemos frequentemente longe de quem gostamos, e porque os afectos persistem, alimentamo-nos das memórias dos tempos em que vivemos mais próximos, em que criámos cumplicidades e partilhámos tanta coisa das nossas vidas. Fazemos assim um convívio diário com imagens que já não existem hoje e nunca poderiam existir, porque o tempo passou e ele nunca passa sem deixar as suas marcas.
Quando após algumas décadas olhamos para a nova imagem do outro, fazemos automaticamente e instintivamente o confronto com a que a memória guardou, e a diferença é abissal.
E a terapêutica para isto?
Só há uma que é o prazer e deve ser dada sempre em profilaxia, em doses regulares e contínuas.
Entranhámos há muito que crescer é desprezar o prazer e convertermo-nos ao dever, e isso é profundamente errado.
A multidão de “senhores respeitados” tendo como lema de vida “muito riso e pouco siso”, é o maior centro de recrutamento de frustrações e graves depressões.
Dever e prazer equilibram a vida e fazem-na feliz, que é para isso que ela existe.
E se pensarmos bem, há sempre oportunidade para temperar a vida de prazer, e estar com os amigos ou com as pessoas que amamos é um elemento essencial desse gozo.
Não é justo para nós nem para quem gostamos, que deixemos os nossos cabelos brancos nascerem sozinhos.
Não adiemos nunca as bicas, os jantares, os petiscos, os passeios, as idas à praia, as sessões de gargalhada, as idas à bola, etc.
Um outro dia passei em Vila Viçosa, no Carrascal, na escola onde fiz a instrução primária porque o meu sobrinho João queria saber quais as janelas da minha sala de aula. Encostada ao muro que dá para a rua, do lado direito de quem olha para a escola, há uma oliveira de cujo tronco retorcido, eu e os meus amigos fazíamos o avião que nos levava pelos sonhos até às mais longínquas paragens do universo.
E já passaram quarenta anos…
Juro-vos que não dei conta do tempo passar e sei que existiram milhares de coisas que não fiz e poderia ter feito, mas prometo estar mais atento, porque só com muita sorte é que a vida me vai dar mais quarenta anos para eu viver e estar com quem amo.

Comentários

  1. Quim, tenho lido ultimamente muitas das tuas publicações e sinceramente revejo-me em quase tudo o que tu escreves. Embora não seja uma calipolense de gema como tu e tenha sido apenas uma visitante na maior parte das vezes, tu consegues exprimir muito do que eu sinto em relação à minha infância, à amizade e à Vila que me trás tantas e tão boas recordações. Passaram 40 anos, 30 anos mas não estamos velhos apenas mais maduros... AH ah, ah. Beijinhos. Lena Pereira

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