Quatro horas de Natal

Com a total cumplicidade da alma, aceitei o repto e reservei quatro horas do meu calendário do Natal 2011, para o voluntariado na festa dos sem abrigo organizada em Lisboa pela Comunidade Vida e Paz.
Quatro horas apenas, o suficiente para que centenas de histórias se cruzassem com a minha, histórias de gente que não precisa de falar para expressar a dor de uma vida triste e sem rumo, pois os olhares, os gestos, as rugas, a tez, denunciam desde logo esse destino de uma existência madrasta.
Cruzam-se todos os dias connosco na cidade e nós não os vemos ou não os queremos ver, são uma multidão de gente que carrega às costas em mochilas sujas, todo o muito pouco a que podem chamar seu, gente que pela persistência no infortúnio, já incorporou a pobreza no seu código genético e que com a mesma naturalidade com que respira, afirma dormir na rua ou em alguma estação “quente” da cidade.
É uma multidão que chega ávida de pão, mas também e sobretudo de afectos.
Mais de vinte anos depois, reentro na Cantina da Universidade onde tantas vezes almocei e jantei com os meus colegas, apresentam-me as minhas funções como voluntário e cedo, ao abrir da porta à longa fila que já se encontrava no exterior do edifício, descubro que os sorrisos, as palavras, os carinhos e a atenção, são tudo o que de melhor posso dar.
Aperto as mãos, escuto, falo, olho nos olhos e sinto em mim esse conforto maior e esse privilégio feito da certeza de que as minhas mãos, os meus ouvidos, a minha boca, os meus olhos, o todo que sou eu, estão no sítio onde mais fazem falta, estão ao serviço das pessoas que nessa tarde soalheira mas fria de domingo, mais precisam deles.
Há milénios atrás, fez-se o Natal, quando um Deus se tornou menino para vir dizer aos Homens que só o amor vale a pena.
E eu, talvez daqui até dia 25 não venha a sentir de forma tão marcada, a alegria do verdadeiro Natal.

Comentários

  1. Bem hajas pelo teu gesto de generosidade. É tão bom sentirmo-nos úteis...

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  2. Bem hajas pelo teu gesto de generosidade. É tão bom sentirmo-nos úteis...

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