Um doce pingo sobre a revolução


Damaia, 1 de Maio de 2012 / 8.30 Horas
Na sua residência na Damaia, Maria da Piedade Faísca acorda ao som do rádio despertador que comprou numa excursão da VEFA a Alcácer do Sal. Sintoniza a Rádio Romântica sempre na esperança de que o “éter” lhe ofereça o som do seu querido Tony Carreira.
Hoje é feriado, o que é pouco relevante para uma reformada como ela, mas por ser primeiro de Maio vai cumprir o seu programa habitual deste dia, sempre em conjunto com a sua amiga Maria Inocência Rebimba, e que há muitos anos consta de uma ida ao Cemitério do Alto de S. João à campa dos seus falecidos, antigos companheiros na Guiné e agora sepultados no talhão dos combatentes.
Como todos os anos, descerão a Morais Soares até à esquina com a Almirante Reis a fim de se incorporarem na manifestação da CGTP, acompanhando-a até à Fonte Luminosa. Aqui ouvirão os discursos, gritarão palavras de ordem e comerão umas farturas, que costumam ser boas nas barracas dos feirantes que se instalam por ali.
Na mesa do hall de entrada lá estão já dois cravos vermelhos comprados numa loja de chineses, que os naturais estão caros e estes sempre podem durar mais tempo.
Há que manter viva a chama da luta anti-fascista em que sempre acompanharam os seus maridos, e este ano, 15% de desemprego está mesmo a pedir muita “gritaria”.


Damaia, 1 de Maio de 2012 / 12.00 Horas
Maria da Piedade e Maria Inocência estão as duas há uma hora numa longa fila à porta do supermercado Pingo Doce. Alertadas pelas notícias não resistiram a vir até aqui e aproveitar as promoções de 50% para compras acima de 100€.
Apesar de não terem grandes reformas, esta é uma oportunidade de ouro para usar algumas poupanças e compor os frigoríficos e as despensas das suas casas.
Ainda estão longe da entrada da loja, manifestam as saudades do Gouxa por terem perdido o seu programa mas estão distraídas à conversa com um casal vindo da Buraca, que chegou um pouco depois delas e que começou logo por comentar que a fila por lá ainda estava maior.
Já falaram dos filhos, dos netos, do custo de vida e do desemprego tendo repetido já por 23 vezes a frase:
-Onde é que isto irá parar?


Damaia, 1 de Maio de 2012 / 15.30 Horas
Sentadas à frente de duas meias de leite e de duas sandes mistas numa das cafetarias do Pingo Doce, as duas amigas e os seus respectivos carrinhos de compras “atacados” de detergentes e comida, esperam pela chegada do filho da Maria Inocência para que este, no seu automóvel, as possa levar às suas casas porque esta quantidade de produtos são impossíveis de transportar à mão por duas senhoras já na casa dos setenta.
Comentam a poupança e lamentam a falta de organização pois no interior da loja não havia espaço sequer para respirar.
- Deveria haver mais polícia.
Sugere Maria da Piedade.
- E também mais caixas para reformadas.
Acrescenta Maria Inocência.
- É verdade amiga Inocência, que aqui estou eu derreada dos quadris por tanto encontrão que levei.
- E as pisadelas que eu levei nos joanetes?


Damaia, 1 de Maio de 2012 / 20.10 Horas
Após o jantar e enquanto espera pela telenovela, Maria da Piedade não tem outro remédio senão ver o telejornal.
Hoje até tem algum interesse, após 10 minutos a darem imagens da “Guerra Pindo Doce” vai matar saudades da manifestação da CGTP na Alameda, a que faltou após tantos anos de participação ininterrupta.
- Está pouca gente.
Pensa para consigo. Continuando...
- O tempo está mau e depois os transportes estão pela hora da morte.
E conclui:
- E depois, este novo líder não parece ser muito forte nos discursos e a motivar a malta.


Damaia, 1 de Maio de 2012 / 23.00 Horas
Acabou a telenovela e Maria da Piedade está a apagar as luzes de casa para se ir deitar.
Vai mais uma vez confirmar que a porta está bem trancada e dá de caras com os cravos vermelhos de fantasia comprados na loja chinesa.
- Vou guardá-los. Para o ano por certo darão jeito.
Ao abrir a gaveta e ao colocá-los dentro, ainda pensa:
- Malditos chineses. Fazem isto numa perfeição.
E continua:
- Um dia Portugal será deles. Até já temos de lhe pagar luz.
Rematando:
- Ai país de Abril, onde é que a gente irá parar?


E agora digo eu:
- De promoção em promoção até à gaveta final.

Comentários

  1. mano querido
    As coisas mais importantes do mundo não tem explicação
    porque são feitas apenas para serem sentidas...
    Muitas coisas não podem ser explicadas, mas são sentidas intensamente e nisso reside o seu valor.
    Rui Pereira

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