“Alentejanados”



Quando a minha avó Francisca ceifava trigo de sol a sol e a minha mãe, com dez anos e depois de terminar a instrução primária, lhe preparava e levava o almoço ao campo, sobrava-lhe o domingo para ir até ao ribeiro lavar a roupa. Mas quando chegava o inverno e as mãos adormeciam na geada agreste que envolvia as azeitonas que apanhava desde madrugada, sei que poucas vezes deixava de roubar tempo ao descanso para ir rezar na novena da Senhora da Conceição.
A minha avó, que viu o mar pela primeira vez na Nazaré quando íamos a caminho de Fátima, e quando eu, adolescente, já tinha um histórico de banhos na praia, será sempre um dos meus maiores exemplos de fé e de honestidade.
Ali em vila Viçosa, num profundo e doce Alentejo.
A fé é a alma toda e a religião será sempre uma casa de Deus com muitos traços da responsabilidade dos Homens, esses mesmos Homens que definem regras e colocam a moral por cima da honestidade que põe à superfície da pele e na cor dos gestos, o tom da alma e da fé que a perfuma.
E o trabalho é a expressão da fé dos pobres que se fazem heróis e próximos de Deus na genuflexão sobre as pedras frias dos ribeiros ou nas Ave Marias quando a geada que envolve os frutos substitui as pérolas envoltas em ouro dos terços dos poderosos.
O novo Bispo de Beja afirmou hoje que Portugal está “cada vez mais “alentejanado’” em termos de fé cristã, com religiosidade pouco evangelizada, prática dominical muito reduzida e vida moral desvalorizada.
Se fosse mais atento talvez pudesse ver para lá do óbvio e sentir e palpar as expressões da fé do seu “povo de Deus”, que estão onde deveriam estar, muito para lá das janelas das sacristias onde a moral é tantas vezes um exercício de retórica utilizado como pano opaco de veludo sobre a desonestidade e o “pecado”.
Talvez lhe fizesse bem ser mais “alentejanado” e sair do palácio onde habita e descer do púlpito de onde prega para aprender com a simplicidade dos demais.
O Alentejo é um canto da alma nascido das raízes da fé, Senhor Dom João Marcos.

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