Carnaval II




Com cinco anos, no Carnaval de 1972, a família resolveu pôr-me a cantar o fado de Coimbra agarrado a uma viola de plástico com demasiado ar de rock, mas disfarçada com uma série de fitas penduradas, que lhe davam um ar mais académico e bem mais respeitável.
Provando-se que em 1972 se recorria à reciclagem, muito mais do que hoje, só que então por manifesta necessidade, registe-se que todo o fato foi confeccionado pela minha mãe a partir de uma colecção de saias pretas das minhas avós e tias. Ficou célebre o facto de alguns meses mais tarde, a minha tia Maria, preparando-se para um funeral, ter procurado uma saia preta que pensava ter restado, e não a ter encontrado por já não existir, tal tinha sido o seu empenho e generosidade na elaboração do fato e no fornecimento de matéria prima.
Recordo-me perfeitamente deste dia e do momento em que tirei esta foto.
O fotógrafo foi o Sr. Sousa Menezes, um homem nobre de Vila Viçosa, a quem a vida foi tirando recursos financeiros mas que manteve sempre na postura e no carácter, a nobreza dos homens bons e sérios. Fez da fotografia a sua forma de ganhar a vida.
Com uma sensibilidade artística apurada, eram célebres as preparações longas para que a pose fosse a mais adequada ao momento. Se repararem bem, parece que estou a cantar, qual Rouxinol do Choupal, eu que de cantor só tenho nome, e nem esse é adequado ao Fado de Coimbra.
Para além das matinés na Sociedade Artística, a que por certo não faltei com o meu fato, recordo-me que outra das vantagens de me vestirem assim tão diferente, era o facto de andarem connosco a visitar a família, e nessa altura de Carnaval em qualquer casa Calipolense, em cima da mesa estava sempre um prato cheio de fritos variados: filhós, nógados, azevias de grão (as minhas favoritas), azevias de gila, borrachos, argolas fritas, etc.
Toda a gente fazia fritos pelo Carnaval, mais até do que pelo Natal, e mesmo que não os fizesse por lhe ter acontecido algum mal, como doença ou morte de um familiar, os vizinhos e os amigos, sempre se encarregavam de lhes encher as casas com os doces da tradição.
E eu, no meu papel de menino mascarado e bem comportado, o melhor que podia fazer era comer todos os fritos que me ofereciam, agradecendo-os e elogiando-os, que nestas coisas de agradar, nunca fui de me fazer rogado.
Estou certo que foi nestas andanças que fiz o tirocínio da gulodice que fez de mim um apaixonado por todas as sobremesas, e que contribui para a minha diabetes.
Aproveitando a guitarra e a pose, sempre digo:
- Ai triste fado!

Comentários

  1. Joaquim, a infância é a altura mais feliz de cada um de nós e, quando desses momentos conseguimos guardar memórias, então podemos rever a dimensão da nossa felicidade. Acho que o meu amigo está muito bem nesses dois momentos que fez o favor de partilhar connosco e, se me é permitido, ainda hoje mantém esse ar distinto e sério que nestas fotos mostra. Quem me dera ter imagens assim tão antigas guardadas nalguma gaveta de casa, mas como a minha vida é mais antiga, infelizmente tudo se perdeu, só resta a memória e, mesmo essa, um pouco trapalhona. Um abraço e parabéns pelas fotos. Um abraço.

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