Lisboa eterna

O calor de um domingo de verão põe os carros em fila compacta para a margem sul, e eu fico com o Viaduto Duarte Pacheco livre e por minha conta para mergulhar em Lisboa.
Passo pelas Amoreiras e espreito Campo de Ourique, desço ao Rato, faço a Politécnica, atravesso o Príncipe Real, sempre e só ao meu ritmo e ao ritmo dos semáforos, porque na cidade assim tão vazia não há nada mais que me detenha ou me faça avançar mais velozmente.
Desço a Misericórdia e antes de virar à direita para o Camões, espreito a Rua do Alecrim com o Pórtico da Lisnave ao fundo e o Tejo de permeio num azul fortalecido pela luz do meio-dia.
Quem um dia se sentir triste venha aqui e saboreie esta vista, garanto-vos que não há melhor “doping” para a alma.
Deixo o carro, desço o Chiado e vejo Lisboa entregue a grupos de turistas altos, louros, inicialmente brancos mas já convertidos a cor de lagosta pelos efeitos do nosso sol, todos de mapa e guias na mão como que competindo numa grande caça ao tesouro.
A Brasileira convida a um café. Não resisto, entro e peço um que desfruto ao som de um grupo de Castelhanas cujo timbre elevado, como é seu hábito, abafa qualquer outro som.
À porta da Brasileira, Pessoa é um herói e a sua estátua sentado, obra do Mestre Lagoa Henriques, nunca é ponto de passagem, sendo sempre porto de chegada de todos os que vieram de perto ou de longe à procura da verdadeira poesia de Lisboa.
Tiram fotos, sentam-se, abraçam-se ao poeta, mas o que mais me chama à atenção são dois rapazes aí pela casa dos trinta e aspecto estrangeiro, que aqui chegados selam o momento com um beijo.
Lisboa convida permanentemente a alma à autenticidade e depois, não há nada melhor do que um beijo vivido com quem se ama para tornar eternos e especiais, os momentos e os lugares.
É domingo mas a Bertrand está felizmente aberta e eu percorro sem pressas os seus corredores e sucessivas salas, folheando livros e revistas, qual espeleólogo descobrindo a mais fantástica das grutas.
Saio da livraria e entro na vizinha Basílica dos Mártires para participar na missa de domingo. O Chiado cosmopolita oferece esta infinidade de igrejas, recantos perfeitos que nos permitem tratar do espírito e atestá-lo de paz.
A viver uma manhã assim perfeita, quase sem dar conta, vejo-me depois a subir a Trindade e a afogar-me num bife inundado de molho e com um ovo estrelado em cima a escancarar-se para mim sorridente.
Pelas melhores razões, faço uma trégua na guerra ao colesterol elevado.
É tempo de regressar a casa e por isso aproximo-me novamente do Camões apreciando de longe a nobreza dos edifícios desta Praça onde tudo respira a Eça.
Mas no centro da Praça e por ser Santo António, há uma banca de venda de manjericos com os cravos de papel de cores bem garridas e as suas quadras de sabor bem popular.
O pregão da vendedora ecoa pela Praça em despique com o ruído do eléctrico 28, não só para fazer de nós compradores, mas também e sobretudo para nos recordar que Lisboa é nobre mas as suas raízes mais profundas estão e são povo.
Já regressado ao carro, desço a Rua do Alecrim, atravesso o Cais do Sodré e coloco-me paralelo ao Tejo, acompanhando-o nos seus últimos metros antes de se entregar ao imenso Atlântico.
Espreito para a minha direita e vou bebendo mais uma vez os tons rosa e ocre da cidade que por ser assim tão luminosa, um dia alguém chamou de Cidade Branca.
Cidade Branca e digo eu, Cidade Perfeita.
Lisboa é única nesta singularidade de ser Atlântica e ser toda ela um presságio de Mediterrâneo.
E assim num domingo quente de verão, eu, Ulisses navegando pelos mares da vida, saio de Lisboa com a certeza de que a ela, a minha Ítaca, quererei sempre e terei sempre de um dia voltar.

Comentários

  1. Lindo! E não é que ainda ontem tivemos oportunidade de viver um dia parecido à tua manhã?! E quando descíamos, ao ver o Tejo ao fundo, também comentámos a maravilhosa vista! Lisboa é realmente uma cidade fantástica!

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