Margaridas e aromas de esteva nos vales do Paraíso

Na tarde de um domingo do último mês de Janeiro, um daqueles dias em que a intensidade do sol nos faz esquecer o frio e o inverno, saí para passear no campo com o meu irmão e o meu Tio Filipe.
Há décadas que não o fazíamos, e comigo ao volante, por certo nunca o tínhamos feito.
Passámos por montes e quintas, andámos por atalhos, falámos de pessoas de antes e do presente, lembrámos acontecimentos das nossas vidas e, sobretudo, desfrutámos da tranquilidade que só o Alentejo nos oferece e da qual só nós alentejanos conseguimos desfrutar.
Chegados ao Monte do qual o meu tio cuidava, saímos do carro, e enquanto eu e o meu irmão vagueámos terreno fora naquele doce delírio de quem tem a oportunidade de por momentos voltar à casa da sua infância e avivar a memória dos cheiros, das cores e dos sons, o Tio Filipe, sentou-se num velho banco de pedra à sombra de uma árvore.
A doença ia avançada e a dificuldade em respirar limitara-lhe definitivamente a mobilidade e matara-lhe aquele prazer que sempre fez seu, de nunca sair do espaço da sua liberdade e da sua vontade.
Aproximei-me dele e conversámos um pouco.
Falou-me de um ribeiro que antes passava por ali e do qual agora não havia gota de água, embora houvesse aquele cheiro a poejo que é sempre denúncia de um terreno com humidade.
Apontou-me uma pedra branca lá ao longe e no leito do ribeiro. Era ali que a minha avó Chica vinha muitas vezes lavar a roupa.
Contou-me os projectos, muitos, que tinha para o seu futuro…
Por cima de nós estava uma velha árvore sem folhas e de cor negra, numa aparência de infertilidade, mas ainda carregada com dióspiros de um laranja em tons garridos.
Por momentos vi-o como a continuação da árvore naquela esperança construída da insistência em projectar o futuro, quando todos sabíamos que o cancro tinha chegado silencioso e apenas se fizera sentir quando já não poderia haver futuro.
No domingo passado despedi-me dele com um beijo no Hospital de Évora, confortei-o com o olhar porque por palavras a emoção apenas deixou que me saísse um tímido:
- Muito ânimo.
E saí com o coração a dizer-me que esta tinha sido a nossa despedida.
Não me mentiu o coração, o Tio Filipe partiu hoje para o paraíso.
Sei que o encontrarei um dia por lá, e por certo estará sentado num longo e fértil vale com tapetes de margaridas e cheiro a esteva e Alentejo, à beira de um ribeiro de águas tranquilas, esperando por mim para falarmos da pesca, do campo, da Sopa de Tomate, do Gaspacho e de tudo aquilo que ele me ensinou a gostar.
Sei que não trocaremos muitas palavras, porque foi sempre assim, e serão mais uma vez os olhares a falar por nós e a dizer o quanto nos queremos.
Passará pouco ou muito tempo, mas eu sei que chegarei carregado de saudade, a mesma que já sinto e me faz chorar a alma, e ainda agora há pouco soube da sua partida.

Comentários

  1. Aqueles de quem gostamos nunca partem, continuam a viver através de nós, das nossas memórias e da partilha que fazemos delas com os outros. Foi isso que acabaste de fazer comigo e com todos os que irão ler este "post". Um abraço forte á distância

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  2. Quando parte alguém que nos é querido custa-nos sempre mas resta as saudades e os momentos bons que vivemos com eles.
    Isso nunca nos será tirado e ficará para sempre nos nossos corações.A eterna saudade.
    M. Pereira

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  3. Há certos momentos que nos faltam as palavas. As de conforto e coragem são, muitas vezes, as que nos saiem. Penso que nestas horas marcar a nossa prensença é mais que 1001 palavras. Fica o abraço, tão longo como a nossa amizade, esta contruida deste o tempo em que a juventude nos levava em grandes aventuras.

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  4. Assim como protegemos nossa felicidade, temos também que proteger nossa infelicidade. Não há nada mais desgastante do que uma alegria forçada. Se você está infeliz, recolha-se, não suba ao palco. Disfarçar a dor é dor ainda maior."

    Joao paulo ribeiro

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