Sem abrigo


A chuva não me perturba, nem por cair assim tão intensamente, enquanto espero que o semáforo dos peões se ilumine de uma intensa cor verde. O que é a chuva quando comparada com a dor deste vaguear sem rumo?
Os carros aceleram e tenho a certeza de que nenhum condutor ou passageiro dá por mim. Já faz muito tempo que não saboreio o gosto de cruzar o meu com o olhar de alguém. Será culpa deste meu ar andrajoso? Desta barba e cabelos descuidados? Serei o reflexo no espelho e o medo de um possível destino? Será a vergonha pelo incómodo que causo às consciências?
Adoro a noite e não só porque me esconde.
Quando me deito na calçada entre os jornais e os cartões, o álcool aquece-me e facilita-me o sono que me transporta para a única porta que a vida me mantém aberta: os sonhos.
Não fossem eles, e diria que tudo o que tenho cabe dentro deste saco de pano sujo, do qual jamais me aparto.
Até a fé me deixou, ao mesmo tempo que a memória me levou as palavras que os meus lábios já não conseguem rezar.
Só os sonhos me devolvem os beijos cujo gosto há tanto esqueci, só eles me devolvem as noites de amor, o prazer e a paixão…
Houve um tempo em que tinha casa, família, filhos e em que me sentia dono de um destino que sempre supus de sucesso. A vida tinha sido sempre assim, a subir. Mas um dia falhou o trabalho e a chegada da pobreza encarregou-se de sacudir todos os afectos.
O nada, quase sempre implica, ninguém.
Degrau a degrau, cheguei aqui ao ponto onde estou, sem nada, sem ninguém, ferido em tudo e na dignidade.
Nem sequer tenho já direito a nome ou identidade.
Hoje, só o lixo me ofereceu uma carcaça rija e só desse desperdício de alguém se me atenua o desconforto que vou tentar afogar neste pouco vinho que me resta na garrafa.
A chuva não pára mas já vejo ali ao fundo o alpendre onde me deito e de onde posso ver os aviões que chegam e que partem desta Lisboa onde vagueio.
Ai se eu um dia pudesse ter asas…

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