A minha geração


Quando era inverno juntávamo-nos na cavalariça do lado direito, na posição de quem entra ao portão principal do nosso improvisado mas eterno liceu. Era um longuíssimo espaço rectangular que abordávamos por uma entrada situada num dos topos e que mantinha as manjedouras em ambos os lados. Apesar do balcão e do bar, este espaço era o que menos conseguia camuflar as funções iniciais do edifício, construído para albergar os equídeos “motores” das viaturas que serviam os Senhores Duques de Bragança.
Colocávamos em círculo, as cadeiras de plástico de cor laranja e pés de metal preto, e planeávamos juntos, um incrível futuro.
Quando a primavera eliminava as nuvens, permitindo que o sol do Alentejo brilhasse e colocasse a descoberto os perfeitos aromas do campo, passávamos por vezes o portão da Tapada Real e buscávamos a Fonte dos Castanheiros para ali podermos planear esse futuro, inspirados pelo odor a poejo e hortelã que nos era oferecido pelas margens das ribeiras onde nos sentávamos em grupo.
De caminho sempre testávamos a sorte, que no Alentejo não usa trevos mas sim estevas, e a busca de quatro pétalas nas suas flores. Quase sempre as encontrávamos.
Estávamos no inicio dos anos oitenta, éramos cerca de dez amigos e tínhamos em média, mais oito anos que a liberdade, que assim, crescia e amadurecia connosco.
Um tal de Roger Waters compusera uma canção que falava de tijolos e de uma parede, e nestas tertúlias de amigos, a canção ícone do The wall, dos Pink Floyd, era dissecada à exaustão tornando-se ícone da rebeldia que todos os jovens gostam de atribuir a si próprios:
- Daddy what else did you leave for me? (Pai, o que mais me deixaste?)
A liberdade é reconhecidamente uma herança da geração dos nossos pais.
E o tal futuro incrível planeado em grupo, mais não era do que o assumir orgulhoso dessa herança, concretizando-a na acérrima vontade de jamais voltar a ser, apenas e só, mais um tijolo da previsível e monótona parede da hipocrisia do politica e socialmente correcto.
À mesa da liberdade, arquitectávamos as nossas vidas com base em sonhos ilimitados e tendo a nossa própria vontade no centro do processo criativo.
Beneficiávamos das energias que brotam das cumplicidades dos bons amigos, éramos impulsionados pela fé e nunca duvidámos que o amor seria a nossa escolha, em toda e qualquer circunstância.
Ontem, no decurso de uma agradável conversa ao serão e na partilha das mais nobres cumplicidades do coração, ele, com menos anos vividos, lançou-me a pergunta em jeito de desafio:
- Qual é a tua geração?
Boa pergunta.
Ocorreu-me e respondi:
- A dos “filhos da madrugada”.
E hoje acrescentaria, e pelo que vos disse:
- Somos os “filhos da madrugada” e irmãos da liberdade.
E ficaria bem a história se terminasse aqui mas impõe-me a coerência que um pouco mais de trinta anos depois do The Wall, revisite esta minha geração na hora em que já não somos os emissores mas os receptores da pergunta:
- Daddy what else did you leave for me?
E a história toma então uns tons muito mais tristes.
Como geração, falhámos em larga escala.
Arrumámos a “madrugada”, nosso pai e nossa mãe, no asilo do esquecimento e quais “Caim’s”, matámos a “irmã liberdade”, sempre por dinheiro, subsídios, licenciaturas mais do que saber, poder e estatuto social.
Traímos a sorte das estevas, e pela ambição cega e a ausência de escrúpulos do mais perverso instinto de sobrevivência, carimbámos os passaportes dos nossos filhos condenando-os à condição de emigrantes.
E como diz a canção dos Pink Floyd, tivemos o privilégio de “voar por cima dos oceanos” naquilo que é hoje apenas um pedaço de memória e uma breve foto no álbum de família, mas o que deixamos como herança é só, um pedaço, um tijolo no muro da previsível hipocrisia que tem esse acrescido desconforto de separar a geração nossa herdeira, da completa realização pessoal e do usufruto da sua legítima liberdade.
Sem deixar de assumir as minhas responsabilidades que me cabem por solidariedade geracional, deixem no entanto que vos diga que muito me consola e é para mim motivo de orgulho, ter em dia as contas e o pagamento das facturas, por vezes de quantias elevadas, inerentes ao assumir das diferenças e à ruptura do muro da “alinhada” normalidade.
Orgulho-me e saboreio esse prazer de não ter traído nunca as juras feitas no bar das cavalariças e na margem das ribeiras.
Até porque, contra a depressão: de encontro aos sonhos, marchar, marchar…
E acredito que ainda nos restam muitos anos para mudar o rumo da história da nossa geração.

Comentários

  1. Bem! Eu fui um daqueles que foi inaugurar as ditas cavalariças. Aluno do professor João Figueiredo e do Dr, Torrinha... entre outros. Já por lá andava, jovem o Carlos Aurélio, mais tarde meu colega na Secundária. Foram tempos de saneamento de professores, mas de juventude. Hoje, apesar de tudo, não fica apenas a tristeza de não termos sabido fazer justiça à "mãe madrugada" e à "irmã liberdade". Fizemos tantas coisas bonitas. O mundo mudou realmente. E apesar de vivermos tempos incertos, a esperança dos sonhos e a possibilidade de os tornar liberdade, continua.
    Leio-te sempre com prazer
    Um abraço

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