Vergonha e revolta por sob o luar de Lisboa


No horizonte, o sol já desapareceu há um par de horas, deixando-nos esse breu, marca da noite, onde emerge o infinito ponteado das estrelas agrupadas em constelações, e a lua, que por estes dias, cheia e redonda, se oferece generosa às mais doces cumplicidades.
Soam carros ao longe, e só eles e os nossos passos, quebram o silêncio que o frio impôs às ruas, empurrando a gente para a quietude dos seus lares, confortáveis abrigos devidamente aquecidos.
É hora do jantar.
E jantar buscará por certo, e quiçá em vão, o homem a quem a necessidade e o desespero empurraram para o intenso vasculhar dos contentores de lixo dispostos num semi-círculo.
Metodicamente e sem nunca deixar cair algo de cada contentor, abre saco a saco, colocando o resultado da sua recolha num outro saco de plástico que lhe pende do braço.
A necessidade matou-lhe a vergonha de ir procurar a comida no lixo e, vergonha de tudo, mas sobretudo de mim próprio, é o que eu sinto quando cruzo o meu com o seu olhar e o cumprimento com um brevíssimo “boa noite”, que me esforço para que seja o mais caloroso possível.
A minha fé, o valor da igualdade e a consciência social impõem-me esta vergonha. Ainda esta tarde conversava com uma colega sobre dietas e sobre o elevado custo da sua drenagem diária de gorduras que a leva a tomar litros de água impregnada de L-Carnitina…
E agora cruzo o passo com o da gente com fome que definha pelas ruas da cidade.
A odisseia da vergonha ou as imbecis desigualdades de um mundo que insistimos em considerar civilizado e moderno.
Não sei onde acaba a minha vergonha e começa a minha revolta perante este comprovado brilhante resultado da estabilidade política que o primeiro-ministro hoje me convidou a estimar.
Será que fala da estabilidade que salva os banqueiros, lançando-lhes as jangadas construídas por sobre os restos dos cidadãos?
A estabilidade é desejável quando estamos bem e no melhor caminho, mas já todos vimos que esta procissão de “Passos” há muito chegou ao “calvário”, e que se impõe que acabemos a “quaresma” e aceleremos uma “ressurreição” urgente.
E até “Grândola” poderá virar aleluia, assim queira a nossa fé e imponha a nossa garra.
Acelero o ritmo da minha caminhada porque o frio a isso convida, esse frio no meio do qual o teu olhar, as palavras e as memórias, com as cumplicidades da lua, emergem como pedaços quentes saídos de um profundo amor.
E a lua sorri?
Tal como o sol quando nasce, também a lua não sorri para todos.
E impossível é ficar indiferente.

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