Da Menina Luciana à D. Dulce: O percurso de um cidadão nacional


Um dos muitos benefícios de concluir com êxito a 4ª classe do Ensino Primário era o facto de passarmos a dispor de um Bilhete de Identidade, indispensável para as matrículas no Ciclo Preparatório.
Assim, algures no verão de 1976 e depois de me ter submetido à tortura de uma sessão fotográfica às mãos do Sr. Sousa Menezes, que entre os ajustes na pose do “modelo” e os acertos nas luzes e na máquina demorava cerca de uma hora por cada “chapa”, lá fui eu pela primeira vez à Conservatória do Registo Civil, então no edifício dos Paços do Concelho de Vila Viçosa.
Sentindo-me muito importante, com as fotos tipo passe numa carteirinha de plástico e a inevitável Cédula Pessoal, tive o privilégio de pela primeira vez poder contactar através de um muito alto balcão de madeira, com a Menina Luciana, menina cuja idade andaria quiçá pelos sessenta anos.
Sem nunca sorrir e sempre vestida de negro, porque havia sempre uma razão triste para um permanente luto, esta mulher era dona da caligrafia mais fantástica que até hoje já vi. Não escrevia, desenhava letras, e guardo a imagem do seu desempenho artístico com uma caneta de tinta permanente sobre qualquer impresso, por mais modesto que fosse.
Depois de ter comprovado a minha fantástica altura de 1,40m encostado a uma velha régua de madeira colocada na vertical e que emitia um ruído simpático sempre que o indicador metálico passava de centímetro em centímetro, depois me ter esborratado todo com o indicador direito numa almofada para carimbos e de ter assinado o nome uma dezena de vezes, lá fiquei vários dias à espera que o Bilhete de Identidade pudesse ser recolhido no mesmo local após a sua chegada do Arquivo de Identificação de Lisboa.
Entre o 1,40m e a estabilizada altura de 1,73m foram então várias as vezes em que a Menina Luciana me renovou o dito documento.
Hoje, 37 anos depois e porque está a chegar ao fim a validade de 10 anos do meu Bilhete de Identidade, dirigi-me à Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa para pela primeira vez solicitar o Cartão de Cidadão. Marquei ontem por telefone e tinha a indicação de que à 10,15h da manhã, o Balcão 3 estaria por minha conta.
Cheguei um quarto de hora antes do previsto, à hora certa, e fui recebido por um funcionário que confirmou o meu nome na lista e me indicou de seguida um balcão que já estava disponível e fui desde logo atendido pela funcionária D. Dulce.
De uma assentada converteu-me 5 cartões num só e colocando-me em frente de uma máquina “sabichona”, uma espécie de “Menina Luciana Electrónica”, mediu-me numa generosa atitude que me ofereceu 2 centímetros, tirou-me uma foto em que estou tão estranho que o Sr. Sousa Menezes morreria de susto, registou as minhas impressões digitais dos dois indicadores sem borrar os dedos e digitalizou a minha assinatura.
Máquina eficaz mas que pelos vistos não é para graças pois a única recomendação da D. Dulce quando me colocou perante a dita, foi:
- Não mostre os dentes.
Paguei e estava pronto para sair da repartição às 10.11h, quatro minutos antes da hora prevista para o meu atendimento.
Felicitei a D. Dulce pela eficácia e ela respondeu-me com um ar desconfiadíssimo. Afinal de contas, os funcionários públicos neste país estão tão habituados a elogios como os pobres estão acostumados a comer lagosta.
Com um ar satisfeito, reencontrei os Jacarandás da Rua Castilho que me faziam cobertura e protecção ao carro. Haja alguma coisa que funcione neste país.
Entro na viatura, coloco-me em movimento disposto a deter a marcha apenas nas passadeiras e semáforos vermelhos, mas acabando no entanto por ser obrigado a dar passagem a uma viatura negra e de alta cilindrada que seguia imediatamente atrás de umas motos da GNR: António José Seguro a caminho de S. Bento para uma reunião com Passos Coelho.
Com o pai fora (ou morto, porque isto já cheira a orfandade), o merceeiro a quem “pregámos” o calote está em negociação com os “putos” e estes vão conversar para ver se podem entender-se e podem esboçar um comportamento de homenzinhos.
Oh triste realidade e má sina!
Não fosse o documento impresso que a D. Dulce me ofereceu como recibo e lá se tinha esfumado em segundos o efeito fantástico e a eficácia da minha “Menina Luciana Electrónica”.
É que, em Portugal, a verdade para além de ser como o azeite e vir sempre à tona, é também como o vinagre… demasiado ácida.

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