Non ho l’età


É enganador este sol que brilha intensamente e que me despertou hoje às cinco da manhã, pois saindo à rua somos atravessados por uma brisa tão fresca, que as pernas abandonadas à frágil protecção das calças de um fato adaptado a uma primavera lusitana, me fazem compreender e desejar a inestética opção por um par de ceroulas que já não constam do meu espólio.
Copenhaga no seu melhor… e ali ao longe, a ponte de Oresund com a Suécia à distância de quase oito quilómetros.
Talvez por inspiração desta imagem de países unidos no contexto do espaço comum que é a Europa, projecta-se-me a memória para 1964. Foi aqui em Copenhaga, no dia 21 de Março, que Portugal participou pela primeira vez numa edição do Festival Eurovisão da Canção.
António Calvário e a sua “Oração” saíram daqui com zero pontos e foram apupados não por demérito musical mas por razões politicas pois os restantes países participantes recusavam “cantar” ao lado de Salazar e Franco.
Não há registo do espectáculo para confirmar o ocorrido após a actuação da Suíça quando um homem entrou no palco empunhando um cartaz “Boicotem Franco e Salazar” tendo obrigado a realização a mostrar o quadro das votações que por estas alturas do espectáculo, estando vazio, não tinha qualquer interesse.
A história de Portugal na Eurovisão começa aqui e acompanha a do próprio país: “O vento mudou” cantado em 1967 por um intérprete de etnia negra, Eduardo Nascimento, antecipou a Primavera Marcelista; em 1974 e poucos dias antes do 25 de Abril, Paulo de Carvalho cantou “E depois do adeus” que foi senha da revolução; a fantástica “Madrugada” da autoria de José Luís Tinoco é uma das canções que melhor retratam a revolução dos cravos e foi cantada em 1975 pelo Capitão de Abril, Duarte Mendes, com cravo vermelho na lapela do casaco; “A cidade até ser dia” cantada por Anabela em 1993 retrata uma Lisboa moderna e preparada para ser Capital Europeia da Cultura no ano seguinte…
Com algumas pontualíssimas interrupções, a nossa televisão pública participou sempre neste evento patrocinando uma desejável divulgação da música portuguesa e dos seus intérpretes, apesar de nunca ter obtido um êxito assinalável em termos classificativos. O empenho para tal também nunca foi grande coisa.
Este ano e por razões de ordem financeira, a RTP abandonou a Eurovisão invocando não ter dinheiro para suportar as despesas de logística nomeadamente os hotéis onde ficaria alojada a delegação nacional.
Quarenta e nove anos depois, Portugal sai da Eurovisão não por imperativo de uma ditadura política mas sim da ditadura dos nossos tempos, a financeira.
Não questiono as prioridades do Estado no contexto da emergência social que estamos a viver, e se o dinheiro dos hotéis da Eurovisão for utilizado para suportar a reforma de alguém, que se calem os microfones. Mas não posso deixar de referir o simbolismo da situação de afastamento total em relação à Europa, situação criada pelos novos ditadores da finança, aqueles, tantos, que só não se chamam “Salazar”.
Numa altura em que se descobre que estes “ditadores” e os seus “testas de ferro”, os imbecis de cartão partidário nomeados para as empresas públicas, ousaram “brincar” levianamente com os dinheiros dos contribuintes em aplicações “tóxicas” até nem é mau de todo que a televisão pública deixe de transmitir festivais e coloque em antena os políticos que já tiveram responsabilidades neste país.
Mas atenção, não a lavar imagens e a falar de promessas, mas sim a assumir o passado, facto que exige no mínimo um entrevistador dotado de uma mínima quantidade de cérebro, assim como de testículos e ovários, nos respectivos sítios.
Cumprindo o paralelismo das histórias de Portugal e da participação na Eurovisão, registe-se que o silêncio de 2013 reflecte a tão mal fadada crise.
Para terminar recordo que o Festival da Eurovisão de 1964 coroou vencedora uma jovem italiana de nome Gigliola Cinquetti que cantou brilhantemente uma canção fantástica chamada “Non ho l’età”, que em Português significa “Não tenho idade”.
Diria que eu também não. Não tenho idade, nem estatuto e nem paciência para esta mediocridade que nos envolve.
Por isso, porque nos calam os microfones mas nunca nos apagarão a alma, contra o silêncio que a crise nos impõe cá vai:
“Grândola, vila morena…”.

Comentários

  1. Meu bom amigo.

    Mais um belo texto que nos dás e que bom.
    Vamos a escrever mais belos textos para todos nós.
    Com um abraço muito grande.
    AR

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