Pastilhas amargas


Por impulso de absoluta e imperiosa necessidade, vítima de uma súbita e incómoda amnésia, eis que de repente, dou comigo no interior daquele que em Portugal é o mais conhecido e difundido campo de treino de tropas especiais de elite em ambiente real de guerra e condições adversas de sobrevivência: o Pingo Doce.
Não é dia 1 de Maio mas ao primeiro encontrão que recebo no apertado corredor das promoções de produtos em acelerada aproximação ao limite de validade, recupero os sentidos e eis que numa fracção de segundos agarro dois itens de compras e fujo para a caixa de forma a sair rapidamente daquele ambiente de gritos e choque de carrinhos e cestos de compras, uma espécie de Buying Ball de acesso gratuito.
Escolho a fila com menos cabeças e coloco-me atrás de um cesto repleto de compras aparentemente abandonado, mas que mais tarde me apercebo pertence a uma mulher aí pela casa dos trinta que veste num estilo garrido entre o rústico e o suburbano Brandoa, que parece ter sida maquilhada pela sua pior inimiga, vítima de daltonismo e num período em que esta estava atacada pelo Delirium Tremens.
Esperta e cheia de experiência, colocou o carro na fila e carrega-o pouco a pouco, fazendo-se desfilar em grande estilo pelos apertados corredores como se estivesse na Passerelle da Moda Lisboa, perdão, Moda Brandoa.
Atrás de mim coloca-se uma outra mulher que utiliza a técnica de “só uma coisinha”. Pergunta-me:
- O senhor não se importa que eu passe à frente? Só tenho uma “coisinha”.
Defendo-me deste ataque:
- Pois eu de facto tenho o dobro de “coisinhas”. Mas são só duas e não a deixo passar.
Sinto o seu olhar furioso mas confirmo através dele que esta competidora já está controlada.
Jamais me passou pela cabeça de que me iria arrepender de não a deixar passar.
A da “só uma coisinha” é mãe da Jéssica, uma rapariga anafada e vestida com um fato de macaco de tricot de cor castanha, tão apertado que a transforma numa espécie de paio de Barrancos. Com uma tiara prateada de plástico na cabeça, sobra por certo de alguma recente festa de reveillon em qualquer Sociedade Recreativa, a Jéssica, em versão genérica e bibelot, da Ana Maria Lucas, resolveu fazer da separação metálica entre as caixas, umas paralelas assimétricas e é vê-la qual Nadia Comaneci insuflada, em pleno exercício.
Os gritos de “Jéssica” que a sua mãe me lança aos ouvidos seriam motivo mais que suficiente para que eu as tivesse mandado avançar à minha frente e por cima de tudo.
A mulher da caixa é lenta e deve ser parente afastada do Nero pois no meio daquele reboliço todo, a lentidão com que passa os artigos pelo visor só tem paralelo no tocar da lira do imperador perante a Roma em chamas.
Com muito custo lá despacha a Vamp da Brandoa e depois passa os meus artigos.
- São 19 euros e 93 cêntimos.
Apresento-lhe o cartão multibanco e recebo de resposta:
- É pena mas apenas por 7 cêntimos não pode pagar com cartão. Não quer levar umas pastilhas elásticas para ultrapassar os 20 Euros?
Estou na fase em que já consigo matar alguém.
Enquanto procuro na carteira só consigo dizer-lhe:
- Outra pastilha? Não bastou ter de a aturar a si e ao seu patrão?
Faz uma expressão entre o incrédulo e a dúvida. E diz:
- Desculpe…
Não a deixo terminar a frase:
- Deixe lá.
Pago com uma nota de 20 Euros, recebo os 7 cêntimos de troco e vejo-me na rua a respirar fundo e a pensar:
- Só uma vítima a lamentar: a minha paciência.

Comentários



  1. Somos de acção e reacção...
    mas o grande dono do pingo doce que meta a pastilha num sitio, que nao digo
    Rui pereira

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  2. Para a próxima compra 4 sacos de plástico: como são vendidos a 2 cêntimos no Pingo Doce, a conta já passava os 20 euros e podias pagar com multibanco.

    Ass. 3º sargento

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