Uma família à sombra da amoreira
O
acesso à nossa família pode sempre ser feito por duas vias: o parentesco ou os
afectos.
E
mesmo aqueles que acedem pela primeira via, apesar de inevitáveis na nossa
árvore genealógica, são sempre sujeitos a uma prova natural de acesso e
avaliação segundo as regras do coração, a qual, em caso de reprovação, os
remete automaticamente para a longa galeria dos conhecidos.
Considero-me
um homem de sorte pelo facto de a vida me ter oferecido uma família grande e sem
necessidade de “chutar” alguém para o Panteão dos Afectos”, tendo para além
disso, a generosidade de me oferecer muitos amigos que pela intensidade com que
o são, se tornaram membros de pleno direito, e indispensáveis, na família que
me rodeia.
Quando
vim estudar para Lisboa em 1984, uma espécie de Maria Papoila na versão
Estudante de Farmácia, fiquei alojado na sede da Fundação da Casa de Bragança,
então ao Príncipe Real, onde tinha como companhia um casal, a D. Engrácia e o
Sr. Francisco, pessoas que até aí eu desconhecia.
Rapidamente
me adoptaram como neto e dos seus afectos se me compuseram os dias do meu
receio no contacto com a cidade grande, onde eu temia tudo, e até a própria
sombra, que eram simultaneamente os dias do deslumbramento e em que tantas
vezes me senti o Artur Corvelo de “A Capital” do meu preferido Eça de Queirós.
A
doença e a reforma destes meus novos avós, trouxe para junto de mim o seu
filho, a nora e a neta, e com o Sr. José, a D. Aldina e a Luisinha, demos
continuidade ao fluxo de afectos que fez do conhecimento nascer amizade e da
amizade crescer laços de família.
Quem
no silêncio e na solidão do nosso quarto de estudante, longe dos pais e de toda
a família, nos chega um dia para nos aliviar na doença com uma sopa ou um simples
chá, está desde logo “condenado” a ser um dos nossos.
Há
gestos que pelo amor que carregam se sobrepõem ao desgaste do tempo, mantendo-se
constantes na primeira linha de todas as memórias.
Conversávamos
longas horas em verdadeiras cimeiras alentejano-lisboetas, partilhámos os
momentos bons e os menos bons, a doença e a partida da D. Engrácia e do Sr.
Francisco, celebrámos os aniversários, partilhámos o enorme amor pelos animais
e muito nos divertimos com o pato Octávio, as cadelas Preta e Lassie, os gatos
Jackie, Tigre, Rita…; as vitórias do nosso Benfica, e também carpimos as
derrotas…
Jamais
discutimos ou tivemos uma palavra menos agradável, por mérito maior,
obviamente, da excelência que eles são como pessoas, e porque quando nós
gostamos muito uns dos outros, todas as diferenças se tornam desprezíveis.
Cinco
anos mais tarde chegou o meu irmão, e juntou-se à festa de vivermos no conforto
da presença uns dos outros naquele inesquecível palacete com um jardim
fantástico de onde emergia uma grande amoreira.
Ontem
estivemos juntos durante uma parte da tarde, nesse encontro que o Natal
felizmente nos impõe às agendas sempre tão sobrecarregadas mas que nunca nos
impedem de saber como estamos, vigiando-nos e cuidando-nos à distância.
A
determinada altura da conversa registámos o facto de nos conhecermos há vinte e
oito anos. E como passaram rápido, todos estes anos.
Conduzindo
já de regresso a casa, senti saudades dessas manhãs em que me sentava à
secretária de madeira virada para a enorme janela do meu quarto que se abria
para o jardim, e sentia a D. Engrácia chegar para dar milho e alimentar os
pombos das redondezas que àquela hora se deslocavam para o “nosso” jardim.
Há
alguns anos, um seu outro filho tinha partido ainda criança, vítima de um
acidente enquanto brincava no Jardim do Príncipe Real e ela tinha prometido
jamais deixar de alimentar aqueles que pelas suas asas davam cor e movimento ao
espaço por sob o Céu onde o filho ganhara o estatuto da eternidade.
A
fé e o amor de mãe tornados pedaços de milho atirados aos pombos de Lisboa.
Bendito
Deus e bendita a vida que nos dá anjos assim que nos inspiram a ser maiores.
Família, porque pedaços do melhor de nós.
Os amigos são parentes que nós mesmos escolhemos
ResponderEliminarSó existe uma coisa melhor do que fazer novos amigos, conservar os velhos
RUI Pereira
Parabéns por saber existir e promover o manancial de afectos que visivelmente povoam a sua vida, brilhantemente traduzido por este delicioso texto. Abraço
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