Os filhos tristes dos palhaços


No Largo do Rossio, em Vila Viçosa, mesmo ao fundo da minha eterna Rua de Três, as caravanas ao redor de uma colorida tenda, rompiam por vezes a previsível pacatez do espaço onde só nas manhãs das Quartas-feiras havia mercado e nos dias 29 de Janeiro, Maio e Agosto, as feiras anuais.
Com melhor ou pior qualidade, passámos a ter uma animada banda sonora feita dos êxitos do momento, e tínhamos por dias, a estranha vizinhança de gente de quem, ao contrário dos demais, não conhecíamos nem o nome, nem a história.
Era a chegada do circo.
Nesses dias em que um carro com megafones apregoava ruas fora, leões, crocodilos, serpentes, palhaços, malabaristas, mágicos, trapezistas, contorcionistas… e a incontornável sessão de “grátis às damas”, apareciam sempre na nossa sala de aula, uns meninos diferentes, invariavelmente acompanhados por umas folhas de papel, e que se sentavam naqueles lugares que nas carteiras de madeira onde nos alinhávamos a par, permaneciam vazios durante o resto do ano.
Recordo-me de lhes ver sobressair a timidez no olhar, nos gestos e nas palavras, expressão do desconforto de quem chega por uma fugaz semana, e se sente intruso no banquete de amigos eternos, rapazes e raparigas unidos pela cumplicidade da partilha de todos os dias.
Em tão pouco tempo, mal conseguíamos ensinar-lhes as nossas brincadeiras, embora por certo os convidássemos a subir connosco ao tronco retorcido da mágica oliveira que era o avião de onde avistávamos, e onde partilhávamos todos os sonhos.
E um inquérito com muitas questões lhes fazíamos, nesta crónica atracção pela diferença de vidas tão distintas das nossas naquilo que nos era dado percepcionar.
Na errância do seu percurso víamos as emoções que chegávamos a invejar.
E das suas histórias e partilhas, fazíamos mote para cavalgarmos pela imaginação, saltimbancos de sonhos planície fora rasgando todos os horizontes.
Mas jamais lhes fixámos os nomes, e assim, nómadas eram eles também nestas raízes pulverizadas ao sabor da estrada que se impunha à sobrevivência e à arte dos seus pais.
Recordo-me deles, sobretudo, como meninos de olhar triste.
E talvez por me recordar dos seus olhares, ainda hoje não consigo oferecer uma gargalhada à piada de um palhaço, por mais rico e glamouroso que a arena do circo o tenha transformado.
Ao redor da festa, das luzes, da música e da fantasia, lá onde estão presas as cordas que sustentam a tenda de todos os sonhos e os trapézios que nos fazem voar até ao infinito, há gente que a vida não ensinou, nem nunca ensinará a sorrir.
E talvez seja aqui que o circo mais se aproxima da própria vida: tantas e tantas vezes, quantas lágrimas existirão escondidas por detrás de uma face que aparenta a festa de um sorriso.
Haja alguém que nos ame e as descodifique, e depois as saiba secar com essa fantástica eficácia do afecto maior enraizado na alma, por vezes, quiçá, apenas e só, com um breve e tímido beijo.

Comentários

  1. E verdade nunca ninguém conseguirá ir ao fundo de um riso de criança triste
    RUI PEREIRA

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