A essência doce do medronho

Procuro num envelope branco da Livraria Escolar que o tempo já fez mudar de cor, e que conservo na gaveta das minhas “relíquias” muito pessoais, esses pedaços demasiado simples do passado, que só eu sou capaz de descodificar e que me avivam a memória de todas as vezes que os procuro.
Encontro um velho cartão-de-visita devidamente rubricado, muitos cartões de boas festas, uma edição de “A bruxa do Castelo de Vila Viçosa”…
Sei de cor a história de cada um destes objectos e todos eles me transportam para os dias em que eu não dispensava a companhia da D. Joana Ruivo e fazia da sua Livraria Escolar, a minha segunda casa.
Antes ou depois das aulas, nas férias de Natal, da Páscoa ou nas férias grandes, em todos os minutos livres da minha infância e juventude, foi ali e por esta amiga que me afeiçoei às palavras escritas, tantas e em tantas estantes espalhadas por toda a casa, em dias passados à conversa, a ler ou então em jogos e brincadeiras com o grupo de amigos que por ali se foi formando: o João Paulo, o Pedro, a Antónia, a Lena, a São…
Sem qualquer vínculo de família, mas por uma amizade como nunca outra, ela foi por certo um dos complementos mais importantes de toda a herança que os meus pais me iam passando em casa, e foi um privilégio tê-la como “mestra” em lições que me ensinaram de tudo, mas sobretudo o inquestionável valor da liberdade, da justiça, do respeito e da simplicidade.
Sobretudo pelo exemplo, mas também pelas conversas alimentadas por algum livro retirado da prateleira e onde o mote poderia ser dado por Florbela no apreciar da ousadia da diferença e do amor que não se verga a convenções imbecis; por Torga, com o enorme amor à terra e às gentes; por Eça, no humor requintado de saber rir de nós próprios; por Pessoa, no gigantesco valor de saber e ousar sonhar seguindo todos os instintos da alma, até os que parecem mais desprezíveis.
Por tantas conversas que tínhamos quando ambos nos encostávamos ao balcão e esquecíamos as horas, sei que lhe devo esta ousadia de nunca temer os fantasmas das diferenças, fazendo do usufruto da verdade de nós mesmos e da simplicidade do que somos, mais do que qualquer coisa que possamos aparentar, as raízes para uma felicidade completa.
Comunista e ateia, é eternamente para mim a maior prova de que as pessoas quando são grandes de valores podem estar nos antípodas das nossas crenças e das nossas ideologias, mas nunca deixam de ser grandes.
Hoje, dia 19 de Novembro, fui à gaveta das minhas relíquias à procura do número exacto de anos que cumpriria a D. Joana Ruivo, que com uma enorme saudade nos deixou em 1991. Não encontrei mas estou seguro que será algures entre os noventa e os cem, a idade da mulher mais moderna que alguma vez eu conheci.
Mas a data não esqueço jamais e relembro-a ao ritmo da saudade desses fins de tarde em que comemorávamos o seu aniversário assando bolotas num aquecedor e bebendo licor um licor de medronho que ela mesmo preparava com os frutos que apanhava no castelo.
Ríamo-nos sempre quando referia estar mais velha e nos recomendava que na sua morte dispensássemos o caixão e a enrolássemos apenas em qualquer cartão que tinha acumulado no armazém, daquele cartão que formava as caixas que traziam os livros até Vila Viçosa em encomendas que nós íamos buscar à estação do Caminho de Ferro no seu elegante e sempre bem tratado automóvel NSU em tons de cinza.
Nesses dias do seu aniversário nunca queria que eu lhe comprasse nada, queria antes que eu lhe fizesse o presente. E eu fazia tudo o que ia aprendendo nos Trabalhos Manuais do ciclo e do liceu, quer fosse em ráfia, lã, corda… e um ano até lhe ofereci uma boneca que desenhei numa folha branca de tamanho A4 usando a letra “x” da velha máquina de escrever.
Hoje, mando-lhe desde aqui este presente alinhado em palavras muito simples garantindo-lhe a eternidade no universo dos meus maiores afectos, e na presença dos amigos de sempre, faço-lhe um brinde com o inevitável licor de medronho, agradecendo-lhe por nos ter ensinado a todos que a vida toma sempre o gosto da essência que nós lhe dermos, tal qual a aguardente onde “afogamos” os medronhos.
Ah, é verdade… quase me esquecia de vos dizer que o cartão-de-visita rubricado que ainda hoje guardo na gaveta, entregou-mo no dia em que eu fui estudar para Estremoz. Fez-me a recomendação de o usar sempre na carteira para que quando um dia necessitasse de algo fosse com ele ao pronto-a-vestir do seu irmão e conseguisse assim resolver o meu problema.
Nunca é por acaso que há pessoas eternas em nós e que amaremos até ao fim dos nossos dias. 

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