Honestidade, coerência e democracia

Só com a ajuda do Google consigo identificar o dia em que durante a campanha para as primeiras Eleições Presidenciais pós revolução, vi o General Eanes num pequeno comício em Vila Viçosa. Foi ao inicio da tarde do dia 18 de Junho de 1976, horas antes do célebre comício na Praça de Touros de Évora e do seu muito célebre percurso em pé no tejadilho de um carro enquanto ecoavam balas na zona do Jardim Público.
O palco em Vila Viçosa estava montado junto à rotunda da Fonte da Praça e de costas para a Igreja de São Bartolomeu. Desde as janelas da casa do meu amigo Manuel tive uma visão privilegiada para o acontecimento e para os distúrbios que começaram antes mesmo da chegada do candidato com trocas de socos, e algum sangue à mistura, entre os seus apoiantes e os de Otelo Saraiva de Carvalho.
Do alto da janela e sobretudo do alto dos meus quase dez anos só me recordo de ter achado que para herói ele era demasiado franzino. E como ousava um homem com aquele aspecto frágil vir falar de forma tão convicta de democracia numa terra então demasiado aquecida por outros “valores”?
Ganhou as presidenciais e regressa a Vila Viçosa, e aí recordo-me perfeitamente da data, no dia 1 de Dezembro de 1980. Homenageou D. João IV na sua estátua no Terreiro do Paço, falou ali mesmo à população, e quase se cruzava com o General Soares Carneiro que exactamente á mesma hora fez um comício no Cine-Teatro que então ainda não se chamava Florbela Espanca.
Três dias antes da morte de Sá Carneiro, Vila Viçosa esteve no epicentro das presidenciais, e o General Eanes voltou a falar de democracia e da consolidação da mesma, politicamente no mesmo sítio onde sempre esteve, embora desta vez o perigo para a sua reeleição viesse da direita.
Então, do alto dos meus catorze anos, já consegui reter melhor as suas palavras, e entende-las.
Foi reeleito para o seu segundo mandato.
Fui hoje buscar estas minhas memórias do General Ramalho Eanes no dia em que lhe é prestada uma homenagem nacional e através delas encontrei desde logo uma das suas grandes virtudes: não importa a direita ou a esquerda, importam sempre as nossas convicções e a total coerência com os nossos valores.
Não importa contra quem lutamos, importa pelo que lutamos e a força com que o fazemos.
E os heróis até podem ser franzinos de corpo porque o que realmente importa é a grandeza que lhes vai na alma.
Fiz simultaneamente o exercício de tentar encontrar alguém que tendo ocupado um lugar de relevo na hierarquia do Estado, pudesse ser hoje uma referência clara e inequívoca para Portugal.
Por uma razão ou por outra, não arranjei ninguém que se lhe equipare nesse estatuto.
O General Eanes carrega a história da luta pela implantação real e efectiva de um regime democrático em Portugal, cultivou sempre a honestidade, nunca andou atrás de patrocínios para benefícios pessoais, familiares ou outros, e jamais mergulhou nessa sôfrega ambição cega por cargos, pelo poder e pelo engrossar das contas bancárias (directas ou indirectas como por exemplo, via fundações), tentações que tantos “santos” têm feito cair dos altares da pátria lusitana.
A homenagem é pois mais do que merecida, mas deveria ser muito mais do que isso, e ser uma inspiração para quem hoje assume o poder ou quem se prepara para o fazer pois vai demasiado escasso o exercício da honestidade e do real respeito pelo povo eleitor, essa raiz mais profunda da democracia. 

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