Um dia de Outono

O relógio da torre do Paço pressente o dia, e desde as sete alinha o toque com os pavões que aos gritos saúdam o sol nos recantos mais secretos do Bosque e do Jardim da Duquesa, em badaladas arrastadas que assinalam os quartos de todas as horas.
Numa doce ilusão, o céu de um intenso tom de azul parece querer desmentir o Outono pintado pelo tapete tecido pelo vento e que infinitas folhas amarelecidas dos plátanos semeou sobre a calçada e sobre a raiz das laranjeiras plantadas junto à Porta da Senhora da Graça, ao Convento dos Agostinhos, onde já reluzem frutos maduros. Mas o ar frio que se respira ao abrir da vidraça, e que o corpo empurra efusivamente para o quente da braseira acesa sob a camilha mata todas as dúvidas e confirma que é de Outono este meu dia em Vila Viçosa.
Enquanto caminho Corredora acima e entrego o olhar ao branco do casario que o brio da gente adornou com uma esquadria de barras azuis e amarelas que parecem querer elevar ao céu a cor do rodapé que nos acompanha os passos; sinto na memória o canto da gente a sair em ranchos para o campo, para sob as ordens do “manageiro”, apanhar a azeitona que é precursora do melhor azeite; sinto o cheiro dos madeiros a arder nas casas térreas habitadas por esta altura pelos “ratinhos” e pelos “sacaínhos” que desde as suas aldeias, e tantas vezes desde a Beira, se acercavam para ajudar nas lidas do campo; escuto o estalido das castanhas assadas pelo “Sr. Musgado” no seu carro de madeira junto ao mercado; provo o vinho novo que já escorre das pipas da taberna do “Belhuca” ou das tascas do Rossio; provo os dióspiros e as bolotas que nos divertimos a assar na beira da braseira de picão; cheiro os marmelos que cozem na preparação da marmelada que em breve será colocada ao sol protegida por um recorte de papel vegetal; escuto a voz da avó Natividade a sair para o campo de madrugada vestindo uma saia quente que com alfinetes e muita arte se transformava numas calças, gritando alegre para os vizinhos: “temos de lá ir”…
Sinto a minha gente e definitivamente sinto-me no conforto de estar na minha eterna casa quando finalmente chego à Praça e me faço à rotunda da Fonte conhecendo de cor essas brisas, que do lado de São Bartolomeu ou do Castelo, aqui se cruzam quando atravessamos em direcção ao Restauração para um café que nos aquece pelo efeito de uma boa conversa entre os melhores amigos.
Jamais saberei se venho aqui por ser quem sou, por ser eu, ou se venho aqui para me alimentar de Alentejo e continuar a ser aquilo que jamais quererei deixar de ser.
Ou serão talvez as duas coisas, a origem e o destino, e o Alentejo definitivamente eterno em mim.
Pela genética e sobretudo… pela força de um profundo e perpétuo amor.
No Outono ou em qualquer outro dia.

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